Fundada em 1934, Londrina cresce rapidamente com a intensificação das atividades empreendidas pela CTNP. Mas, no ano seguinte, quando o trem chega como o grande emblema do progresso, a cidade é ainda muito carente de infraestrutura. As ruas de terra são um problema por causa da poeira e também quando chove. Faltam estradas trafegáveis, não há energia elétrica e só alguns estabelecimentos comerciais e casas possuem geradores, ainda assim abastecidos a diesel. A água provém de poços perfurados e o número de médicos é reduzido diante das necessidades de uma população que cresce sem parar. Como são poucos os aparelhos de rádio, as notícias do Brasil e do mundo demoram a chegar ao sertão, espalhando-se geralmente por meio de conversas nos balcões e mesas dos botecos, armazéns e hotéis. O povo está praticamente alijado da civilização, resignado com a falta de conforto e vive praticamente para trabalhar. Mas não se vê desânimo, pois as perspectivas quanto ao futuro do lugar são as melhores.
Jardineiras e caminhões ficam sujeitos à precariedade dos caminhos que levam aos povoados. Na lama, atolar é quase uma certeza, o que pode atrasar a viagem por horas e até mesmo dias. Por isso, ainda não há concorrência para o trem, cuja linha continua a avançar, chegando ao patrimônio de Nova Dantzig (atual Cambé) – agora sem os préstimos do engenheiro Amedeo Boggio Merlo e do seu amigo Pier Ferrucio Vecchi.
Conforme já dito, com a indenização recebida em 1930 ao desligar-se da MacDonald’s Gibbs e mais um empréstimo conseguido junto ao Banco Brasileiro de Descontos, Amedeo e o amigo montam uma pequena serraria em Nova Dantzig, a primeira do povoado, batizada com o nome do lugar.
Focado na direção dessa empresa e com ela iniciando uma nova etapa em sua vida, o engenheiro, nos primeiros anos, pouco se ausentou dali, realizando apenas viagens esporádicas a São Paulo, para encontrar-se com Tereza, com quem mantinha planos de se casar em breve. Empolgado, ele se deparava com oportunidades que surgiam a todo instante na área em desbravamento, o que reavivou o sonho acalentado quando de sua chegada ao Brasil, em 1922, onde aqui já estava o amigo Ferrucio. Amedeo imaginava, àquela época, demorar pouco em solo brasileiro e prosseguir viagem rumo à promissora Austrália. Mas, convencido pelo amigo de que ambos, em suas especialidades, poderiam fazer a vida por aqui, o italiano fica e não se arrepende. O país, tão necessitado de meios de transporte, investe em estradas de ferro e há trabalho de sobra para profissionais preparados. Agora, depois de anos como empregados, eles se tornam empreendedores, sendo Amedeo o sócio majoritário, com 80% do capital.
Os dois amigos e sócios optam por instalar a serraria na então Vila de Nova Dantzig porque a mesma está ainda em seu embrião. Naquele começo dos anos 1930, não há concorrência e o negócio, conforme o esperado, vai de vento em popa. Como Ferrucio entrara com o terreno e tem 20% na sociedade, Amedeo responde integralmente pela gestão. São, agora, pioneiros também no processamento de madeira – matéria-prima indispensável para o surto de construções em curso, que aumenta ainda mais com a chegada, a cada dia, de inúmeras famílias. Perito em química e tendo aprendido a lidar com teodolitos, Ferrucio Vecchi é, na verdade, um sócio distante: tempos depois, emprega-se na Estrada de Ferro Sorocabana, em São Paulo, para atuar na gerência de suprimentos. Ali ele vai trabalhar até aposentar-se.
O patrimônio de Nova Dantzig só se torna distrito de Londrina em 1937 e município dez anos mais tarde. Começou a surgir timidamente após a chegada de algumas famílias da Cidade Livre de Dantzig (atual Gdanski), à época um pequeno estado independente entre a Alemanha e a Polônia, instituído em 1920 e anexado pelos alemães em 1939 – fato este considerado a gota d’água para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.
Aos primeiros moradores se somam grupos de outras nacionalidades: japoneses, italianos, eslovacos, portugueses, espanhóis, libaneses, cada qual trazendo seus pertences e peculiaridades. Muitos brasileiros que já viviam no Paraná também se dirigem para o lugar, a exemplo de outros tantos que vêm do estado de São Paulo, de Minas Gerais, do Nordeste e de outras partes do país. Essa gente se empolgara com a propaganda feita pela CTNP a respeito da oportunidade de adquirir terras férteis em áreas que estão sendo abertas e colonizadas. No caso dos estrangeiros procedentes de Dantzig e de outros países, a compra dos lotes é acertada já na origem. Os adquirentes só não sabiam que suas terras estão ainda debaixo de uma floresta e, ao chegar, têm que abrigar-se provisoriamente com suas famílias em galpões construídos pela empresa colonizadora, dividindo o espaço com muitos outros. Instalados, resta-lhes colocar a mata abaixo, erguer um rancho para habitar e, após o preparo do solo, cultivar lavoura.
Compradas a prazo, as terras têm que produzir logo. Por isso, a maioria das famílias chega com o objetivo de plantar café, a cultura mais importante e, nos espaços intercalares, um pouco de cada coisa: algodão, milho, feijão e outros cultivos diversos para o próprio sustento. Em volta das casas, grande parte delas mantém criação de aves, suínos e alguns bovinos para leite e carne.
Os donos de armazéns de secos e molhados de localidades próximas, geralmente vendem mercadorias a prazo para agricultores que não dispõem de recursos, anotando suas dívidas em cadernetas. Merecem crédito mesmo aqueles em que jamais haviam botado os olhos. É assim que os produtores conseguem adquirir alimentos, roupas, calçados, combustível, ferramentas, sementes e outros insumos, pagando só quando a lavoura começa a produzir. Confia-se no “fio do bigode” e quase não há calotes.
Figura importante no lugar
Diante das muitas frentes para a derrubada da floresta, árvores centenárias vêm ao chão, tornando-se matéria prima de excelente qualidade para quem, como Amedeo e seu sócio, se aventura a investir em uma serraria. Geralmente os agricultores procuram os donos desses estabelecimentos para negociar as toras, até porque elas são um estorvo nos sítios. Mas estão cientes que devido a oferta excessiva, os preços oferecidos vão ser irrisórios.
Tudo acontece muito rápido, também, na área urbana. Do dia para a noite, o patrimônio se enche de novas casas e comércios. Como os moradores se ressentem da falta de uma igreja, ainda em 1934 eles resolvem se mobilizar e, no dia 16 de dezembro, aprontam a primeira capela, construída de madeira e consagrada a Santo Antônio. Essa conquista conta com a participação direta e voluntária de Amedeo: além de doar todo o madeiramento necessário para a obra, como vigas, tábuas e ripas, o italiano elabora o projeto, orienta os trabalhadores que se revezam em mutirão na obra e faz parte de uma comissão que arrecada os recursos financeiros para a compra dos outros materiais, bens e o enxoval. A igreja se resume a um modesto salão, uma torre com sino, uma varanda na frente e uma pequena sacristia nos fundos.
Em 1934, com a fundação da paróquia de Londrina, subordinada à Diocese de Jacarezinho, as celebrações religiosas ficam a cargo da congregação dos Palotinos, a qual recebe vários sacerdotes alemães.
Certa vez, ao recordar-se da construção da capela, Amedeo comentou com familiares que embora a comunidade tivesse executado a obra por seus próprios meios e com a melhor das intenções, o bispo de Jacarezinho ficou aborrecido, pois, naquele corre-corre, o pessoal havia se esquecido de consultá-lo.
A capela contribui para integrar a população e não apenas por motivos religiosos. Como a vida social é pobre em opções, a religião envolve as pessoas em celebrações e, por tabela, em festividades, como quermesses. Aliás, o que não falta é entretenimento: nos finais de semana, bailes animados por sanfoneiros acontecem nas casas de algumas famílias, na Escola Alemã e até mesmo no Hospital São Francisco, que durante um tempo fica desocupado. O primeiro cinema só começa a funcionar em 1939 e, dois anos depois, é inaugurado o Tênis Clube de Nova Dantzig.
Conforme relata o livro do historiador José Garcia Gonzales Neto – “Breve história da paróquia Santo Antônio de Cambé” – apenas três anos depois a igrejinha ganhou uma ampliação. Em 1942, o então bispo de Jacarezinho, Dom Ernesto de Paula, cria a paróquia da cidade sob o patrocínio de Santo Antônio de Pádua. Em 1950, está pronta a igreja matriz. O crescimento da paróquia de Cambé ocorre ao ritmo veloz da cafeicultura na região e da própria expansão da cidade, já em 1947 um município.
Voltando a 1935, na edição de 9 de outubro daquele ano o Jornal Paraná Norte, de Londrina, traz a notícia de que há nas imediações de Nova Dantzig cerca de 800 mil pés de café em formação. O povoado ganha importância como centro de abastecimento e prestação de serviços para a população, com pequenos e médios comerciantes. As carroças são o meio de transporte mais comum. Ainda no mesmo ano, no dia 15 de agosto, a comunidade se dirige à estação para aplaudir, ao som da Banda Municipal de Londrina, a chegada da locomotiva “Três”.
A serraria fica maior
Diante do bom andamento da serraria, que já atende toda a região, Amedeo não tem dúvidas em ampliá-la, transferindo-a para um local mais apropriado. Constrói ali um barracão, moradias para os empregados mais estratégicos e uma casa onde pretende viver quando se casar com Tereza.
Em 1937 são 26 os integrantes da equipe liderada pelo mestre-de-serraria Manoel Walqueire, de 40 anos. Uma relação de nomes de funcionários datada de 10 de outubro daquele ano, destinada ao Serviço de Nacionalização da “Inspectoria Regional do Trabalho do Estado do Paraná”, revela que metade dos funcionários tem origem estrangeira: seis italianos, três portugueses, um espanhol, um lituano, um alemão e um espanhol. O mais velho da equipe, o italiano Henrique Bianch, tem 67 anos e trabalha como “guarda-noite”; os mais jovens, o italiano Narciso Piretta e o brasileiro Dante Rodrigues, prestam serviços, respectivamente, como serrador e motorista. O alemão Kurt, de 34 anos, atua como foguista e o português Domingos Lourenço Almeida é o encarregado do corte da madeira. No total, há 7 serradores e 12 ajudantes de serviços gerais.
A empresa passa a contar com maquinários maiores que, diante da indisponibilidade de energia elétrica, são movidos por dois equipamentos parecidos com pequenas “maria fumaça”: os locomoveis. Dotados de rodas iguais às de carroça, são fabricados na Europa, sendo um de procedência inglesa – que já operava na primeira serraria – e outro de origem alemã. Consumindo lenha, os locomóveis produzem o vapor que movimenta as engrenagens por meio de um sistema de correias. O terreno inclinado facilita e tais estruturas ficam alojadas no barracão, sendo que, sob o piso deste, instala-se o conjunto de serras, o qual recebe as toras, em um trabalho contínuo. Há dois trilhos para a movimentação de uma vagonete que leva os troncos para a máquina Tissot, servida de 8 serras paralelas, onde as madeiras são trabalhadas.
Numa primeira etapa, os caules maciços se transformam em pranchões que, na sequência, acabam reduzidos a tábuas. Com isso, vão sendo fragmentados por completo: das tábuas ainda é possível obter madeira de menor espessura para assoalhos e forros, ripas e mata-juntas. De outra parte saem os sólidos vigamentos.
Oitenta por cento das toras são perobas com 20 a 30 metros de comprimento por 60 a 90 centímetros de diâmetro, que se misturam a marfins, cedros, ipês, imbuias, cabriúvas e outras espécies de grande e médio portes. Esses maciços chegam à serraria em rústicos caminhões sem cabines que partem ainda de madrugada para buscá-los onde já estão em acúmulo. Com a intensa devastação das florestas, as toras se acham com facilidade e, por isso, têm pouco valor comercial, sendo erguidas às carrocerias por meio de um reforçado sistema de catracas. O trabalho requer especial cuidado para não haver acidentes nas operações de carga e descarga.
A visão de uma serraria em atividade, com o frenético vai e vem de trabalhadores e o entra e sai de caminhões, em meio a muita poeira e a fumaça dos locomóveis, não deixa de ser caótica. Toras esparramadas por todo lado, materiais prontos para entrega, montanhas de lenhas, cavacos e pó de serra.
Com sua determinação em empreender, Amedeo é um dos primeiros a investir em um novo negócio, que, por um tempo, manterá paralelamente à serraria: uma pequena olaria para produção de tijolos e telhas dos tipos francesa e paulista. Com isso, além de madeira, fornece também outros materiais destinados às construções que pipocam em ritmo alucinante no povoado e na região.
A exemplo de Nova Dantzig, cujos primeiros moradores são os imigrantes advindos daquele pequeno e efêmero estado encravado entre a Alemanha e a Polônia, sendo praticamente todos eles de origem germânica, uma outra comunidade surge na mesma época há apenas 16 quilômetros dali: a Gleba Roland, atual Rolândia, formada por famílias alemãs.
No início da década, na então República de Weimar (a denominação da Alemanha entre 1919 e 1933), uma instituição chamada Companhia Para Estudos Econômicos Além-Mar, havia realizado estudos junto a Paraná Plantations para que famílias daquele país tivessem a oportunidade de emigrar para as áreas em desbravamento no Brasil. Muitas, especialmente a partir de 1934, se aproveitaram da chamada “operação triangular”. Por meio dela, os interessados negociavam bens com a Paraná Plantations que, por sua vez, empregava-os na compra de material ferroviário de empresas alemãs. Com isso, as famílias adquiriam o direito a posses de terra na Gleba Roland, oficialmente fundada em 1934 pela CTNP.
Em Weimar, o presidente daquela companhia, Erich Koch-Weser, convida Oswald Nixdorf para organizar o projeto de colonização no Brasil. Em 1932, Nixdorf segue para o sertão do Paraná com o intuito de receber e orientar seus conterrâneos. No início, os imigrantes são basicamente filhos de agricultores ou pessoas interessadas em buscar novas perspectivas. No entanto, com o início das perseguições políticas, religiosas e raciais, desencadeadas pelo nazismo, o tipo de imigrante muda. Políticos, religiosos e alemães-judeus, muitos deles com cursos universitários, vêm para a Gleba Roland ajudados pelo ex-deputado do partido católico alemão, Otto Prustel.
O artigo “Fotografia e memória: 75 anos da história do Hotel Rolândia contada em imagens”, de autoria de Paulo César Boni e Cássia Maria Popolin, publicado em 2009, traz informações que ilustram o nascimento de Rolândia. Consta que o russo Eugênio Victor Larionoff, empregado da CTNP em Londrina, conseguira comprar três datas para construir um pequeno hotel na localidade ainda coberta de mata, após convencer o diretor Arthur Thomas que o empreendimento seria importante para a região. Ocorre que, para evitar especulação, era vedada a funcionários a aquisição de imóveis vendidos pela empresa. Durante os três meses de duração da obra, que foi concluída a 1º de outubro de 1932, o russo contou com total apoio da CTNP, que lhe forneceu um caminhão para o transporte de materiais e também um carro para poder acompanhar os trabalhos. O texto faz referência à Serraria Nova Dantzig e a Amedeo Boggio Merlo: “Larionoff relata em seu diário a enorme dificuldade na encomenda e transporte da madeira comprada na única serraria, localizada em Nova Dantzig, hoje Cambé, de propriedade de Amedeo Boggio Merlo e Carlos de Almeida” [nota: Carlos não era proprietário e, sim, um funcionário que, por algum tempo, trabalhou na contabilidade]. “Apesar da boa vontade desses dois sócios, meus bons amigos, não era possível evitar o atraso. E isso irritava os dois carpinteiros alemães, que não conseguiam concluir a obra. De fato, a construção passou um mês além da previsão.”
Apesar disso, Larionoff sentia-se realizado por ser o primeiro a construir um empreendimento que daria início a uma cidade. “Tudo isto era tão empolgante que apesar de trabalhar muito durante os três meses da construção do meu hotel, nunca me senti tão feliz e com tanta saúde.” O artigo registra também que imigrantes japoneses haviam adquirido lotes nas imediações ainda em 1932, e que a primeira data “urbana” fora vendida ao alemão Elmar Kirschnich, a 18 de junho de 1934.
A inauguração do hotel conta com a presença de Arthur Thomas e de um personagem que havia chegado ao norte pioneiro do Paraná bem antes dos ingleses: o cafeicultor Willie Davids, agora diretor técnico da companhia e que havia sido um dos sócios do capitão Tonico Barbosa na construção do primeiro trecho da ferrovia, ligando Ourinhos a Cambará.
Em Rolândia, além de Osvald Nixdorf, Amedeo fez amizade com muitas outras pessoas, entre as quais o comerciante alemão Guilherme Meyer, dono da Casa Guilherme, e um grego de nome italiano: Atanásio Bello, de quem sempre se recordava. Nos tempos em que viveu com sua família em Nova Dantzig, o engenheiro costumava ir com frequência a Rolândia. Em uma dessas viagens, eles participaram de um churrasco, a convite de Nixdorf, em sua fazenda.
Um refúgio no sertão
Em 1936, chega ao porto de Santos uma das primeiras famílias de imigrantes judeus alemães. O casal Heinrich e Kaete Kaphan é acompanhada de duas filhas e um filho de nome Klaus.
Em 2012, aos 82 anos, Klaus relata ao jornalista Rogério Recco o caminho que seus familiares percorreram até chegar a Rolândia – então conhecida como Gleba Roland ou “Standplatz”, pois não era uma cidade ainda:
– Subimos de automóvel para São Paulo, só com a bagagem de mão, e fomos para a pensão da senhora Stettiener, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, onde hoje está o prédio do Banco do Brasil. Na próxima esquina, Alameda Santos, havia uma quitanda, onde eu podia exercitar o meu português comprando uma dúzia de bananas. Dias depois, fomos de trem para Rolândia. O trem partiu da Estação Júlio Prestes às 8 da noite e chegou em Ourinhos pela manhã, onde a gente fez baldeação para o trem da Estrada de Ferro São Paulo-Paraná, uma linha de bitola estreita. Quando tudo dava certo, se chegava em Rolândia às 18 horas do dia seguinte. Durante toda a viagem nós, as crianças, tivemos que usar guardanapos e principalmente luvas brancas, por causa da sujeira. Antes de cruzar a ponte do Rio Tibagi fomos aconselhados a tomar água tônica de Quinino para evitar malária. Chegamos a Rolândia com a roupa perfurada pelas fagulhas expelidas pela locomotiva do trem.
Klaus observa que essa estrada de ferro fez parte de um acordo que a Paraná Plantations celebrou com o governo brasileiro, ligando Ourinhos às terras destinadas à colonização. Para isso, a empresa, o governo alemão e as famílias interessadas em ir embora realizaram a “operação triangular”. A Paraná Plantations recebia o dinheiro entregue por emigrantes alemães ainda na Alemanha. Eles se desfaziam de tudo para conseguir ter suas terras no Brasil. Com esse dinheiro em mãos, a companhia inglesa entregava aos emigrantes uma “Carta de Terras” e comprava material ferroviário da própria Alemanha.
– Foi isso que possibilitou aos emigrantes deixar o país e aconteceu antes que fossem roubados pelos nazistas, conta Klaus, que conclui: cada emigrante só podia levar 10 marcos em dinheiro, mesma coisa que nada.
Quando a alemã Hertha Levy chegou a Rolândia, em 1936, acompanhada do marido com quem havia se casado ao desembarcar em Santos poucos dias antes, enxergou enfim a propriedade: só havia mata e, no meio, uma pequena clareira com uma casinha, duas vacas e um pouco de grama. “Eu estava feliz e pensava: isto agora será meu. Realmente! Na Alemanha nós nem teríamos uma casa, imagine uma árvore! Esses eram os meus pensamentos aos 24 anos. Mas não sabia que não dava para entrar na floresta. Foi uma decepção. Não dava por causa dos espinhos e das formigas. Assim foi meu começo”, relatou ela a Grudun Fischer, autora de Abrigo no Brasil (Brasiliense, 2005).
Em algumas situações, a “operação triangular” não assegurava terras no Brasil e havia famílias que acabavam perdendo tudo. Uma cláusula condicionava o direito à propriedade à chegada do navio em porto brasileiro. Qualquer problema com a embarcação e ninguém teria nada a reclamar.
O casamento com Tereza
Amedeo e Tereza se casam em São Paulo no dia 27 de maio de 1937, aos 36 e 28 anos, respectivamente. Enamorados desde 1934, haviam se conhecido nos tempos em que piqueniques e convescotes, ainda em moda, estimulavam a convivência entre famílias e amigos, nos finais de semana, em clubes recreativos. Nos anos seguintes, o relacionamento de ambos só se fortaleceu e, a despeito da aparente sisudez de Amedeo, o jeito alegre e informal da futura esposa, que insistia em tratá-lo carinhosamente por “Tchun”, o esmorecera. Em contrapartida, ela seria chamada de “Zum” pelo italiano.
Nascida em São Paulo, Tereza cresceu na Rua do Seminário, próximo a Central dos Correios, em pleno centro da cidade, onde o pai, o italiano Francesco Pistone, mantinha a importadora de vinhos Pistone e Filhos. Instruída, ela fizera o curso Normal, equivalente ao secundário, tendo aprendido a tocar piano em um conservatório na Avenida São João. Prendada e exímia cozinheira, muita influência havia recebido da mãe Marina Robba, nascida no Piemonte.
A família Robba tinha história e vale abrir um parêntese sobre ela. Primos de Tereza, os irmãos Enrico e Giovannii vieram para o Brasil com 15 e 17 anos, respectivamente, trazidos por um tio, antes da Primeira Guerra Mundial. Permanecem algum tempo lavando pratos em restaurantes e, quando o conflito começa, ambos não hesitam em, temporariamente, trocar os sonhos nas promissoras terras brasileiras pela renhida luta nas frentes de combate na Itália. Naquele país, tornam-se aviadores e, terminada a guerra, voltam para São Paulo trazendo cada um deles, no navio, o seu aeroplano. É assim que começam a dar aulas de aviação e, entre as turmas pioneiras de alunos, está Tereza Di Marzo, a primeira brasileira a ser brevetada. Com seu tino empreendedor, Enrico funda uma empresa de acumuladores, a Heliar/Saturnia, enquanto Giovanni, sempre pilotando, é o primeiro a lançar panfletos publicitários na capital. Certa vez, ao observar as peripécias do primo, Teresa constata, assustada, que o pequeno avião voava sem uma das rodas. Felizmente, nada de grave aconteceu.
Casados, “Tchun” e “Zum”, Amedeo e Tereza, seguem para Nova Dantzig, onde se instalam na casa que os aguardava no pátio da serraria. Para quem, como ela, vivera até então em uma capital, habituada ao conforto oferecido pela cidade grande, acostumar-se ao pequeno e poeirento lugarejo que, naquele mesmo 1937, se tornara distrito de Londrina, não era fácil. Tereza, no entanto, está determinada a encarar a nova realidade e, já ao chegar, pede ao marido que dispense os préstimos de uma serviçal alemã que havia sido ajustada para trabalhar na casa:
– Tchun, cosa faccio qui, ti prego, mandala via – indaga ela ao marido. Assim, assume todas as tarefas domésticas.
No dia 27 de março do ano seguinte vem ao mundo Roberto, o primeiro filho do casal. O segundo, Hugo Francisco, nasce dois anos depois, a 17 de fevereiro. Ambos os partos Tereza têm em São Paulo, sob o acompanhamento de sua mãe.
No mais, a vida segue seu curso: a região impressiona a todos pelo desenvolvimento, com a rápida expansão dos cafezais, enquanto a chegada de muitas mudanças todos os dias assegura que o processo de ocupação do solo, no campo e nas cidades, se manterá, por tempos, em ritmo efervescente. Isto significa uma demanda muito aquecida para a serraria que, por outro lado, pode contar ainda com a oferta de grande quantidade de madeiras, adquiridas a preço módico, nas áreas em derrubada. Nessa época, contudo, já existem várias outras empresas operando no ramo em Nova Dantzig e imediações.
Imigrantes “gostavam” do fascismo
Embora enfrentando concorrência, Amedeo está satisfeito com o andamento de sua serraria e é uma figura proeminente no distrito que cresce a passos acelerados. Homem respeitado naquela sociedade em formação, consolidara a imagem de empresário que conseguira fazer a vida. A bordo de seu Ford 1929, ele vence as estradas por toda a região, sempre envolvido com os negócios da empresa, mas sem deixar de lado a paixão que o movera desde a juventude: fotografar e filmar. Nessa fase da vida, embora produzindo menos, o engenheiro continua registrando flagrantes da colonização empreendida pelos britânicos.
Em casa, acompanha as notícias do país e do mundo por meio de um rádio RCA que funciona com válvulas, ligado à bateria do carro. E, em uma das paredes da empresa, avaliara que honroso seria afixar um quadro com notória referência à sua terra de origem. Tal quadro exibe a imagem solene de uma figura que conquistara ao longo da década de 1930 o fascínio de uma grande legião de italianos: Benito Mussolini, o Duce. O líder da República Social Italiana e criador em 1919 da ideologia fascista. Por fim, mantendo laços estreitos com a comunidade formada por imigrantes de seu país, radicada em São Paulo, Amedeo recebe pela caixa postal as edições do “Fanfulla”, diário produzido por italianos, do qual passa a ser um correspondente eventual.
Sobre o fascismo, uma observação: a ideologia encontra mais aceitação entre os imigrantes italianos no Brasil do que na Argentina, que também havia recebido milhares de pessoas daquele país. Para o pesquisador Angelo Trento, autor do capítulo sobre o Brasil no livro Fascistas en América del Sur, publicado em 2009, a emigração italiana para as terras brasileiras ocorreu mais tardiamente em relação àquela que se dirigiu ao país vizinho. Os imigrantes em solo argentino tinham ideais voltados ao “Risorgimento” [processo de unificação da Itália] e aos princípios de Giuseppe Mazzini [1805-1872, considerado o apóstolo da unidade do país]. Também havia um caráter republicano e democrático. No Brasil, em meados dos anos 1930, segundo Trento, as associações italianas estavam totalmente a favor do fascismo, por convencimento ou conveniência. O pesquisador acrescenta que a atitude favorável dos párocos imigrantes, os convites do corpo diplomático e o grande poder de persuasão dos notáveis da comunidade na época, como os empresários Francesco Matarazzo (1854-1937) e Rodolfo Crespi (1874-1939), contribuíram para construir o apoio maior dos italianos no Brasil ao fascismo, especialmente a partir dos anos 1930. Em 1936, o próprio Mussolini teria observado:
– Os italianos da Argentina não nos compreendem nem nos amam. Se as coisas continuarem assim, vamos nos dirigir cada vez mais aos italianos no Brasil.
Como não há um Censo no país entre 1920 e 1940, não se sabe exatamente quantos italianos aqui viveram naquele período. Mas, estimativas confiáveis, como as elaboradas por Giorgio Mortara, judeu italiano que emigrou para o Brasil após as leis raciais do regime fascista em 1938, e um dos pioneiros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que, em 1930, havia 435 mil italianos em território nacional.
Historiadores sustentam que o período de Getúlio Vargas teve fortes relações com o fascismo. Seu governo se iniciou em 1930, após um golpe militar que destituiu o então presidente Washington Luís, permanecendo no poder por 15 anos seguidos, de 1930 a 1945. Em setembro de 1937, o presidente implanta um novo sistema de governo que ficaria conhecido como Estado Novo, forjado num caráter de massa.
Para a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Laboratório de História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o governo de Vargas exibia características marcantes do fascismo europeu como “a ideia de um Estado forte, a personificação do poder central, a crítica à democracia parlamentar, a luta contra a pluralidade de partidos, o combate às ‘ideias exóticas’, a adoção de uma política imigratória antissemita”, além da censura e da repressão. Muitos partidos políticos neste governo viveram na clandestinidade, a exemplo do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja tentativa de golpe em 1935, explorada pela propaganda governamental, favoreceu a implantação do Estado Novo. A criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em 1939 seria a expressão fiel da censura no país.
Como praticamente todas as outras casas de Nova Dantzig, nessa época, a dos Boggio ainda não conta com energia elétrica e a iluminação depende de lampiões. Nem mesmo essa luz fraca e bruxuleante consegue afastar Amedeo do prazer pela leitura e, em suas horas de ócio, tem sempre por perto um livro ou jornal. A comida, preparada em fogão a lenha, revela o capricho e o esmero de Tereza para a culinária, de tradição, é claro, italiana – que inclui massas, risotos, polentas e carnes –, acompanhada de vinhos trazidos de São Paulo. Do fogão saía uma serpentina destinada a aquecer a água para o banho – e a ducha tem que ser rápida. Para as crianças, o melhor é o sempre divertido banho de bacia, com água fervida em brasa. A família se dá ao luxo de possuir uma geladeira que funcionava à querosene, ainda uma novidade no sertão.
Habitualmente, quando chega do trabalho, por volta das 17h, Amedeo vai direto para o banho, após o que permanece agasalhado em seu “accappatorio”, o indefectível roupão. Depois, enquanto aguarda pelo jantar, sorve sossegadamente um “negrone”, aperitivo preparado com campari, cinzano e gin.
A Segunda Guerra
Foi pelas ondas do rádio, em meio aos estalos da estática, que o engenheiro passa a acompanhar, com preocupação, os movimentos que caminham para uma tensão crescente na Europa. O ano de 1936 marca o início de uma nova fase na perseguição antijudaica, com uma virulência ainda não vista. Entre 1937 e 1938, com o fortalecimento do regime tanto na política interna como na externa, havia avançado o novo sistema nazista de detenção, com campos de concentração. Ainda é dolorosa, entre os alemães, a derrota sofrida pelo Reich na Primeira Guerra Mundial. As cláusulas do Tratado de Versalhes haviam tirado do país 70 mil quilômetros quadrados de território com mais de 6 milhões de habitantes. O exército fora reduzido, com a proibição de abrigar armas pesadas, canhões e aviões. No livro Mein Kampf, Hitler indicara o inimigo natural do país: a URSS, em detrimento da qual a Alemanha deveria expandir-se. Por outro lado, os vínculos com a Itália se estreitam depois que, no decorrer da Guerra da Etiópia (1935/36), Hitler oferece a Mussolini o carvão alemão em substituição ao inglês. No dia 22 de maio de 1939, Itália e Alemanha firmam o “pacto de aço”, com o qual o Reich assegura a aliança do regime fascista em vista do desencadeamento da guerra. No dia 1º de setembro daquele mesmo ano, a Alemanha invade a Polônia, precipitando a Segunda Guerra Mundial, conflito incitado pelos chamados países do Eixo, ou “eixo do mal”, composto por uma tríade: Alemanha, Itália e Japão.
Para os alemães que ainda queriam emigrar para Rolândia, o conflito significara um pesadelo. No mesmo mês de setembro de 1939, a 19ª transação da chamada “operação triangular” coloca a caminho do Brasil a família de Susanne Behrend. Em 2005, ela relata a Gudrun Fischer, autora de Abrigo no Brasil: “Todo o material de troca já estava no navio, e o navio já havia deixado o porto. E então a guerra eclodiu. O navio ainda não havia deixado as águas territoriais alemãs quando foi obrigado a retornar. Assim, a transação já havia ocorrido, mas nós havíamos perdido o direito às terras”. Só depois de anos os Behrend conseguem vir para o norte do Paraná. Mas, em vez de proprietários de um lote de terras, tiveram que se contentar em trabalhar como empregados. Ao menos haviam conseguido sair na Alemanha.
Em 1940, quase por milagre, a família Kaphan, refugiada em Rolândia desde 1936, conseguiria ainda trazer alguns parentes daquele país, entre eles a genitora de Kaete e avó de Klaus, a quem nos referimos em páginas anteriores. No livro Abrigo no Brasil, Kaete registrou: “A gente tinha um sentimento de culpa: aqui podíamos reconstruir, ninguém nos fazia mal e tudo era mais ou menos tranquilo. Uma sensação agradável, quando comparada com a dos que ficaram. O começo foi muito difícil, mas nós estávamos fora. Minha mãe tinha dez irmãos e só sobraram ela e um tio. Minha mãe ficou aqui conosco e aparentemente estava bem tranquila. Mas quem passasse pela sua casa, de noite, iria perceber que ela chorava a noite toda. Todos os seus irmãos naquela situação. Um irmão conseguiu escapar, mas os outros oito…”
A política do governo brasileiro era de não intervir no cenário mundial. Cuidadoso, o presidente Vargas tenta agradar alemães e norte-americanos, mas o empréstimo que os Estados Unidos concedem ao Brasil para a construção da sua primeira usina hidrelétrica – que na visão de presidente proporcionaria a industrialização do país –, desperta a desconfiança dos alemães.
Com isso, navios de bandeira nacional começam a ser sistematicamente atacados a partir de 1941. No ano seguinte, quando a guerra era total, submarinos da Alemanha e da Itália torpedeiam e afundam embarcações brasileiras. Em represália, Getúlio Vargas decreta o confisco de bens de imigrantes daqueles dois países, fato que não chegaria a se consumar.
Embora inseguro e assustado com o rumo dos acontecimentos, Amedeo não chega a ser molestado pelas autoridades, mas a polícia faz diligências na empresa e em sua casa, oportunidade em que confisca o aparelho de rádio, repetindo um procedimento comum em todas as residências de estrangeiros. Por sorte, o italiano já havia retirado da parede, algum tempo antes, aquele quadro de Mussolini, destruído e enterrado no pátio. Nessa época, imigrantes alemães, italianos e japoneses sofriam toda a sorte de restrições, não podendo ostentar símbolos de seus países e nem se comunicar publicamente pelo idioma pátrio. Nas ruas, invariavelmente, eram alvos de insultos e provocações. Já as pessoas sobre as quais recaía algum tipo de suspeita, a vigilância policial era cerrada e elas só podiam deslocar-se para outras cidades mediante um salvo-conduto.
Para complicar ainda mais a situação dos imigrantes alemães – e, por extensão, dos que tinham vindo dos demais países do eixo –, o governo desarticula ainda em 1942, uma central de rádio de espionagem nazista em pleno Rio de Janeiro. Equipadas com modernos equipamentos, a unidade monitorava o movimento dos navios em rota de abastecimento para o norte da África.
Mas nem isto contém a sequência de ataques a navios mercantes brasileiros, alvos de submarinos alemães e italianos, com um agravante: pela primeira vez, as agressões ocorrem em plena costa brasileira. A animosidade chega a tal ponto que qualquer imigrante italiano, alemão ou japonês, podia ser retaliado. Foi o que aconteceu com um importante médico oftalmologista de São Paulo, especializado em anatomia patológica dos olhos, chamado Archimede Busacca, já idoso, de origem italiana. Ele caminhava tranquilamente pelo Viaduto do Chá quando, sem avaliar a consequência de seu ato, saudou alguém com um inocente “buongiorno”. Ao flagrar a pronúncia em italiano, sumariamente proibida em lugares públicos, um policial abala ao encalço do médico e lhe dá voz de prisão. Só no dia seguinte, ao tomar conhecimento do episódio, dada a sua repercussão, o próprio governador telefona para a polícia, determinando a soltura do médico.
Quando os Estados Unidos entram no conflito, após o bombardeamento japonês à base naval de Perl Harbor, no Havaí, em 1941, começa a pressão de declaração de guerra dos brasileiros e de seu governo aos países do eixo.
O Brasil entra no conflito,
Amedeo muda sua serraria para
Arapongas e a família vai viver
em São Paulo
A população brasileira está perplexa e exaltada, todos esperando por uma reação do governo, uma vez que a situação ficara insustentável: os ataques a navios brasileiros não cessam, em meio a uma violenta ofensiva agora também na costa do Nordeste, causando 607 mortes. Diante desses ataques sistemáticos, o Brasil finalmente faz o que dele se poderia esperar: declara guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão e anuncia apoio total aos aliados Estados Unidos, França e Inglaterra.
Segundo alguns historiadores, Vargas teria protelado ao máximo a decisão, por dois motivos: primeiro, a existência, apesar de todas as agressões aos navios brasileiros, de relações diplomáticas e comerciais com os alemães; de outro, sua afinidade com o fascismo italiano.
Embora, nos dias seguintes, a Rádio Berlim tivesse transmitido que aquele país não mantinha beligerância com os brasileiros, 1942 terminaria com o torpedeamento de vários outros navios de bandeira brasileira, aumentando o número de mortes.
Mesmo em meio às incertezas trazidas pela guerra – que provocara no país o racionamento de combustível, sal de cozinha e outros gêneros – Amedeo e Tereza fazem muitos planos e redirecionam o futuro da família. Com o rápido desmatamento e a maior concorrência por madeira, a oferta de matéria-prima havia diminuindo e isto impactara nos negócios. O esgotamento estava previsto e as serrarias – com seu ciclo relativamente curto – teriam que, em alguns anos, buscar toras cada vez mais longe e conviver com aumento de custos. Diante desse desafio, o italiano avalia a possibilidade de transferir a empresa para uma região que fosse próspera à atividade, com oferta ainda abundante de matéria-prima. Empolgara-se com Arapongas, patrimônio que em 1943 seria elevado a distrito de Rolândia, a pouco mais de 20 quilômetros dali. Ainda com matas no seu entorno, o lugar oferecia todas as condições para que o empreendimento perdurasse ainda por vários anos.
Decidido, o italiano desativa a sua serraria em Nova Dantzig e a transfere para Arapongas, onde, no dia 21 de setembro de 1942, após construir a infraestrutura necessária, a coloca em operação. A nova denominação da empresa é uma referência ao lugar onde foi instalada: Aratimbó. Fica numa zona industrial situada na rua dos Macucos, sem número. O amigo Pier Ferrucio Vecchio permanece na sociedade.
Amedeo e Tereza decidem, também, transferir residência para São Paulo. Os meninos estão crescendo e os pais desejam oferecer a eles um ensino de qualidade, coisa que não há no norte do Paraná, muito menos na incipiente Arapongas.
Na capital paulista, destino para o qual seguiam costumeiramente de trem, os Boggio já haviam inclusive alugado uma residência, onde permaneciam em suas viagens. No entanto, com a guerra no seu auge, Amedeo tinha exata noção que, como italiano, precisava resguardar-se e tomar certos cuidados, pois os imigrantes dessa nacionalidade eram vistos com reservas por parte da população. A mudança para aquela cidade acontece ainda em 1942, ocupando uma casa alugada no bairro Paraíso. Nos dias seguintes, eles descobrem que um vizinho de origem pernambucana havia adestrado seu papagaio para repetir palavras ofensivas contra os italianos, o que irritava Amedeo.
A Itália se volta contra os alemães;
O império britânico se dissolve
No começo de 1943, o Brasil declara sua adesão à Organização das Nações Unidas e à Carta do Atlântico, contando com o apoio dos Estados Unidos, que instala uma base aérea em Natal, no Rio Grande do Norte. É nessa cidade que Getúlio Vargas e o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt se encontram para efetivar a participação brasileira na guerra, por meio de uma Força Expedicionária. Por outro lado, ao enfrentar maior poder de fogo, submarinos inimigos são destruídos mas, ainda assim, uma dezena de navios brasileiros iriam a pique durante o ano, ampliando ainda mais o número de baixas.
Do outro lado do Atlântico, a trajetória de Benito Mussolini já está com os dias contados: o desembarque dos aliados na Sicília modifica por completo o cenário da Guerra. No dia 25 de julho, o órgão máximo do fascismo derruba e prende o Duce por causa de seus fracassos militares. Nessa nova situação, o país se rende aos aliados e declara guerra à Alemanha nazista, que apoiara anteriormente. No Brasil, essa reviravolta traz alívio aos imigrantes italianos, ainda hostilizados por parte da população. Mas os alemães respondem rápido: ocupam a Itália, libertam Mussolini e lhe asseguram proteção para proclamar uma república, cujo mandatário seria apenas um fantoche manipulado por Hitler. Enquanto isso, a população italiana organiza a resistência e coopera com as tropas aliadas, que avançam para o norte.
Ainda em 1943, no dia 15 de março, com a criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), Vargas aprova o envio de tropas brasileiras para combater na Europa.
Durante todo esse período de guerra internacional, o projeto de colonização conduzido pela CTNP, no sertão paranaense, não fora alterado, apenas perdeu velocidade em determinados períodos. Apesar das notícias perturbadoras que chegavam a cada dia, por meio do rádio, o conflito parecia algo distante para o povo que continuava sonhando em aproveitar as oportunidades na vasta região em desbravamento. Patrimônios iam surgindo em função da venda de lotes rurais, os cafezais avançavam e a linha da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná já se aproximava de Apucarana. A guerra não havia impedido que, depois de Londrina, a Paraná Plantations estabelecesse, como planejara, a segunda etapa da colonização. No mês de novembro de 1942, exatamente um ano antes de os oficiais brasileiros da FEB pisarem em Nápoles, o diretor-técnico da CTNP, Willie Davids, se desloca em um comboio de carros para uma clareira aberta a cerca de 100 quilômetros de Londrina, percorrendo uma íngreme picada. Ali nasceria Maringá. Até então, a futura cidade – que seria oficialmente fundada em 1947 – contava apenas com um rudimentar hotel construído pela própria empresa, utilizando troncos de palmito como paredes, coberto com tábuas recortadas para que servissem de telhas.
O primeiro morador de Maringá havia sido, justamente, um padre católico alemão, chamado Michael Emil Clement Scherer, também ele um refugiado. Ainda em 1936, utilizando-se da operação triangular, Scherer negocia seus bens com a companhia inglesa e, em troca, passa a ser dono de 400 alqueires (968 hectares), onde funda a Fazenda São Bonifácio. Intelectual, poliglota e pesquisador considerado um enciclopedista da igreja católica na Alemanha, o padre constrói sua casa no meio da mata, implanta lavoura de café e conclui ainda em 1940 a primeira capela da região. Mas, com seu gênio explosivo, o religioso se torna um crítico do empreendimento inglês, sentindo-se logrado, pois ficara isolado na mata, longe de tudo, achando que suas terras nada valiam. Scherer é o primeiro proprietário de imóvel e morador da cidade, o primeiro fazendeiro e também o seu primeiro padre.
Em represália aos países oponentes, o governo de Getúlio Vargas orienta os Estados para que determinem a mudança dos nomes de cidades que fazem referência a qualquer um deles. Com isso, por meio do decreto-lei n°199 de 30 de outubro de 1943, publicado no Diário Oficial de 13 de janeiro de 1944, Nova Dantzig passa a se chamar Cambé – emprestando a denominação de um córrego do então distrito que, em 1947, seria elevado a município. Por essa mesma razão, Rolândia se torna temporariamente Caviúna (em alusão a uma árvore frondosa comum na Mata Atlântica) e, por via das dúvidas, a alteração atinge até mesmo Lovat, povoado surgido em 1937 por iniciativa da CTNP, cujo nome homenageara o seu precursor Lord Lovat. A localidade, então distrito de Apucarana, seria agora rebatizada de Mandaguari (uma espécie de abelha). O curioso é que, neste último caso, sem que houvesse uma explicação plausível, as autoridades acabaram incluindo a Inglaterra, país aliado, no rol dos inimigos.
A Segunda Guerra Mundial representa o fim da era de ouro britânica. Mesmo com a heroica vitória que estava por vir, o Império vai se dissolver rapidamente após o fim do conflito, com sua influência e prestígio sendo erodidos ao redor do mundo.
Com um total de 25.334 homens, o Brasil participa ao lado dos aliados na campanha da Itália. Seu lema era “A cobra está fumando”, em alusão ao que se dizia à época que seria “Mais fácil uma cobra fumar cachimbo do que o Brasil participar da guerra na Europa”.
Ocorre que embora já tivesse declarado guerra, o Brasil não estava preparado. A aeronáutica apenas começava a se modernizar, com a aquisição de aviões de fabricação americana. A marinha tinha uma série de embarcações obsoletas, pouco aptas à guerra submarina de então. Além de igualmente mal equipado, o exército carregava ainda uma filosofia elitista arcaica e focada em reprimir movimentos políticos internos. Os brasileiros constituíam uma das vinte divisões aliadas presentes na frente italiana naquele momento, uma verdadeira torre de Babel.
Os combates na Europa Ocidental são decididos em 6 de junho de 1944, no chamado Dia D: vindos da Inglaterra, 155 mil soldados desembarcam em Caen, norte da França, na maior operação aeronaval da história militar, com 1.200 navios e mil aviões de guerra.
No lado do Oriente, os alemães acabam completamente cercados por tropas soviéticas e exatamente no dia 22 de abril de 1945 a cidade de Berlim é tomada pelos russos. No dia 30, Hitler comete suicídio e, uma semana depois, o que resta do governo alemão, se rende. Por sua vez, tentando fugir com sua amante para a Suíça, Mussolini é pego e executado poucos dias antes, a 28 de abril.
A guerra na Europa está terminada mas, no Pacífico, as batalhas entre o Japão e os Estados Unidos (auxiliados pela Inglaterra e Austrália) continuam e marcam um dos períodos mais tristes da história da humanidade. Os americanos bombardeiam as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaki, respectivamente nos dias 6 e 9 de agosto, com armas nucleares. O Japão se rende na data de 2 de setembro. A Segunda Guerra tinha chegado ao fim.
São quatro cidades-polo;
Amedeo se torna fazendeiro
No ano em que a guerra termina, Amedeo consegue avançar um pouco mais na realização de seus sonhos como empreendedor. Em pleno 1945, quando o mundo ainda respira a fumaça do maior conflito da história, o italiano, residindo com sua família em São Paulo, viaja constantemente entre aquela capital e Arapongas, onde a Serraria Aratimbó segue à plena. Desta vez, além de gerir seu negócio, ele estica o olhar em direção às novas áreas que estão sendo abertas pela CTNP, agora em mãos brasileiras.
O planejamento da empresa criada pelos ingleses prevê quatro cidades-polo no processo de colonização, distantes cerca de 100 quilômetros uma da outra: a primeira, Londrina, na década de 1930; a segunda, Maringá, nos anos 1940; a terceira, Cianorte, no período de 1950 e, por último, Umuarama, no decênio de 1960. Todas estão propositadamente em linha para receber a ferrovia.
À medida que as vendas de imóveis nas melhores zonas praticamente se esgotam em uma região, atingindo aos objetivos dos colonizadores, passa-se para outra, onde ainda há tudo por fazer.
Em cada uma delas, a empresa funda a cidade e a embala em seus primeiros anos, até que a mesma ganhe autonomia. Para isso, fragmenta a área urbana em pequenas datas, a partir de um planejamento que define o traçado das ruas, os quarteirões, os logradouros, cuidando também da divisão das glebas em unidades rurais. Conta, para a realização das vendas, com os serviços de uma numerosa equipe de corretores, os chamados “picaretas”, que vão esperar pelos “jacus” – como tratam os possíveis compradores –, abordando-os na entrada dos povoados, nas paradas de ônibus e nas portas dos hotéis. Muitos estão interessados em adquirir pedaços de terras para “enricar” com café ou mesmo se contentar com um terreno destinado à construção de uma casa de comércio ou residência. Os jipes levantam poeira, durante todo o dia, carregando gente para lá e para cá, invariavelmente terminando as corridas em frente aos apinhados escritórios da companhia, onde os negócios são efetivados em condições facilitadas.
O que os britânicos fizeram no começo dos anos 1930, colocando a publicidade das novas regiões em processo de abertura para atrair interessados de todas as partes do Brasil e até do exterior, serviu de aprendizado aos novos donos da empresa. Após o formidável sucesso de Londrina, a expectativa era tamanha com Maringá que aquele modestíssimo hotel construído no final de 1942 – a única construção ali até então –, se perde em meio a muitas outras casas e comércios, havendo uma corrida tão intensa em direção ao lugar (que em 1944 passa a pertencer a Apucarana). Surpreendida, a CTNP decide interromper, temporariamente, a venda de imóveis na futura cidade. Seu propósito é fazer de Maringá um centro urbano moderno e, para isso, não quer que o mesmo se desenvolva de maneira desordenada. Para isso, contrata os préstimos do arquiteto e urbanista Jorge de Macedo Vieira, de São Paulo, para a elaboração do traçado.
Em 1945, dois anos antes de a cidade ser fundada, Amedeo se desloca de Arapongas para um encontro que havia agendado com um velho amigo: o suíço Alfredo Werner Nyeffler, em companhia do qual havia trabalhado na primeira etapa da construção da ferrovia entre Cambará e Jatahy. Nyeffler, ocupando uma das salas do escritório da CTNP, é mais que um gerente da empresa, o homem de confiança dos colonizadores – alguém que sabe conduzir com maestria o projeto de abertura e ocupação de Maringá, nessa segunda etapa.
O propósito do italiano é sondar a possibilidade de adquirir uma fazenda e investir na produção de café. Empresário bem-sucedido, ele se deixara empolgar pela atividade rural e entende ser o momento de ingressar também nesse negócio. A falta de conhecimento na agricultura não o preocupa, a situação se mostra praticamente a mesma de quando ele e o amigo Ferruccio Vecchi decidiram apostar na primeira serraria em Nova Dantzig, atividade da qual nada sabiam. Vecchi, desta vez, não participa como sócio.
Amedeo é apresentado por Nyeffler a Waldemar Gomes da Cunha, chefe da equipe de corretores, que designa um de seus melhores “picaretas” para acompanhá-lo em visita a algumas glebas. Após horas percorrendo de jipe a região, parando em várias delas e ouvindo, em cada qual, a repetitiva ladainha sobre a qualidade das terras e tudo o mais, a preferência do candidato a comprador recai sobre um lote de 150 alqueires (363 hectares) no chamado Guaiapó, a nordeste do futuro município. O Guaiapó, que hoje denomina uma avenida importante ligando a cidade ao lugar, fora justamente um dos primeiros a receber a atenção dos desmatadores e já se podia avistar por ali diversas clareiras e propriedades em formação. Naquele 1945, a gleba ficava ainda distante do primeiro núcleo urbano que, com o tempo, viria a se chamar “Maringá Velho”. Para chegar lá era preciso vencer uma estreita picada, atravessando matagais cujos galhos pendiam sobre os veículos.
Por orientação de Nyeffler, os lotes apresentados a Amedeo estavam entre os melhores e o que o impressionara ficava num espigão, bem apropriado ao cultivo de café, com relevo suavemente inclinado e ainda inteiramente sob a mata. Negócio fechado, o novo proprietário sabe que, a partir de agora, vai ser preciso dividir ainda mais sua atenção entre a família em São Paulo, a serraria em Arapongas e a fazenda em Maringá, onde nesta última terá que começar do zero. Na época, empreiteiros se ofereciam aos compradores de terras para fazer a “derrubada”, assumindo o serviço de desmate com um enorme contingente de “machadeiros” e “foiceiros” que, ao final, botavam fogo em tudo. Terreno limpo, uma outra turma era trazida para plantar o cafezal, abrindo covas, semeando e acompanhando a lavoura até que os donos assumissem a propriedade.
Por causa de um córrego que serpenteia a fazenda, o italiano dá a ela o nome de Kaetê, contratando um empreiteiro para efetuar, em breve espaço de tempo, a limpeza da cabeceira, ao lado da picada. Dessa forma, o proprietário se depara com uma nova situação: embora fosse dono de serraria desde 1932, jamais havia pedido a alguém que cortasse uma única árvore. Preocupava-o aquele intenso desmatamento observado no norte e noroeste do Paraná, fazendo desaparecer florestas em ritmo alucinante. O estado, que já presenciara o fim dos imensos campos de araucárias, ao Sul, em consonância com a predatória exploração das matas litorâneas, assistia agora a destruição implacável das grandes áreas verdes no chamado terceiro planalto. A cena se repetia em muitos lugares ao mesmo tempo, todos os dias.
Após comprar seus lotes, os agricultores se lançavam a devastar as matas para tomar posse das propriedades, habitá-las e fazê-las produzir. A floresta era o obstáculo a vencer, a barreira que se interpunha ao domínio da cobiçada terra fértil. Isto tinha que ser feito sem demora, até porque muitos dos que chegavam iriam morar ali mesmo, em seus imóveis, construindo ranchos improvisados com troncos de palmito. Estavam preparados para a vida despojada, sem o menor conforto, confiantes de que, no futuro, todo o esforço e sacrifícios seriam compensados pelos frutos do seu trabalho. A maioria era gente pobre, resignada e acostumada à vida difícil, que chegava para viver no mato. Quanto mais filhos trouxessem ao mundo, mais braços teriam para enfrentar o trabalho árduo na lavoura, que começava antes do sol despontar e só terminava ao crepúsculo, quando a noite se aproximava. Se alimentariam com o resultado de seus cultivos e mais as aves e suínos que haviam trazido, a caça e a pesca. Para cozinhar e tomar banho, a água era trazida do rio, completando os afazeres domésticos, antes de dormir, sob a luz de lampiões e lamparinas.
Amedeo admirava o espírito determinado desses agricultores, que traziam mulher e filhos ainda pequenos para viver no mato, sua disposição para o trabalho e a vontade de vencer. À medida que o povo avançava, ocupando o espaço da floresta, os bichos eram afugentados, mas à noite, enquanto aquela gente dormia, felinos espreitavam as casas, denunciados pela barulheira dos cães e a agitação das criações. Então, despertos, os moradores os espantavam com seus revólveres e espingardas. Na rotina da lavoura, se recomendava tomar cuidado com cobras, aranhas e escorpiões, que podiam se aninhar sob troncos, em montes de lenha ou mesmo nas covas e troncos de café. O palmito, com seu caule esguio e comprido, era traiçoeiro, pois ao tombar, ricocheteava: muitos desavisados se feriam gravemente ou morriam ao ser atingidos.
O médico ortopedista Hiran Mora Castilho, um dos mais antigos de Maringá, lembra que não faltava clientes para a sua especialidade. Todos os dias, segundo ele, vários trabalhadores eram socorridos na “derrubada” e levados, em carrocerias de caminhões, para atendimento de emergência nos pequenos hospitais da cidade. Chegavam, geralmente, em condições miseráveis, com fraturas expostas e membros esmagados. No corte, podia acontecer também de troncos soltos nas copas precipitarem-se sobre os trabalhadores. Tudo isso sem falar de ferpas que trespassavam as mãos, os espinhos, os enxames de abelhas e os ferimentos causados pelas próprias ferramentas. O dia a dia dos trabalhadores não era fácil. Além dos riscos de acidentes – incluindo os com animais peçonhentos, que podiam estar em todo lugar –, eles executavam o serviço, quase sempre, sob o mormaço da floresta, enfrentando tudo de peito aberto.
Na Kaetê, foram plantados 120 mil pés de café da variedade Bourbon, Mundo Novo e Catuaí, construindo-se duas tulhas e um terreiro para secar os grãos. Completavam a estrutura um secador Moreira e um lavador mecânico. Doze famílias de colonos chegaram a morar ali, provenientes, em sua maioria, do estado de São Paulo. Em 1948, a fazenda chegou a produzir 10 mil sacas de café e manteve a criação de gado de corte e leite.
Enquanto isso, a serraria em Arapongas ia de vento em popa – na realidade duas serrarias embaixo de um galpão, onde são produzidos vigamentos, assoalho, tábuas de vários tamanhos, ripas, tacos. Muita madeira é enviada para São Paulo e Santos e, nessa última cidade, devido à alta demanda por vigamento de peroba, a empresa chega a ter um representante, Nilo Souza Alonso.
Durante muito tempo, é o funcionário Mário Gaspar quem vai fazer as compras de toras, nas propriedades. Ele viaja de jipe, mede as madeiras e negocia com os sitiantes, que derrubam a mata e aceitam qualquer oferta para conseguir um dinheiro extra e se livrarem dos enormes troncos.
As duas faces do eldorado
A fazenda Kaetê é aberta para o plantio de café, mas, por vontade de seu dono, tem preservados 30 alqueires (72,6 hectares) de mata nativa, numa faixa oblonga que divide a propriedade em duas partes. Na de cima, margeando a picada, fica o cafezal; na de baixo, acessível por um caminho na mata, a sede e, ao seu lado, a moradia do administrador, cinco casas de colônia para as famílias dos trabalhadores, terreiro e tulha. Amedeo teria sorte com a produção do café. Sua primeira safra, em 1949, é contemplada por preços favoráveis, recompensando, em parte, o investimento realizado. Nesse mesmo ano, para se ter ideia, há quem consegue se estruturar financeiramente com uma única colheita. É o caso do paulista Joaquim Romero Fontes que, contra a vontade do pai, se endividara ao comprar uma pequena fazenda ali mesmo no Guaiapó, com 50 mil cafeeiros. O pai, morador em Taquaritinga, temia que o filho se arruinasse, visto que os preços do café oscilavam. No entanto, devido a um desequilíbrio nos estoques internacionais, a cotação sustentou-se e Fontes não apenas conseguiu saldar toda a dívida, como compra mais terras e, de quebra, ainda traz os pais para viverem na propriedade.
Os percalços da cafeicultura não se restringem às circunstâncias impostas pelo mercado, sujeito a longos períodos de crises causadas por excesso de oferta e preços deprimidos, mas também às condições adversas do clima, com geadas sucessivas. Dependendo da intensidade, o frio pode causar perdas que desacorçoam os menos preparados a enfrentar as naturais agruras do campo. Eles constatam, tristemente, que o sonho de fazer a vida com café não está ao seu alcance e, sim, somente àqueles que, mesmo após sofrerem duros golpes, não esmorecem. Alguns retornam ainda mais pobres para os lugares de onde tinham vindo. Por isso, ao mesmo tempo em que o norte do Paraná era festejado como a terra das oportunidades, onde, como se afirmava, dinheiro se colhia em árvore ou podia ser juntado com rastelo, corria a má-fama de que tudo não passava de lorotas. Ao mesmo tempo em que histórias de gente bem-sucedida, para se exibir, acendia cigarros com cédulas, havia relatos de fracassos retumbantes, fazendo com que pessoas de outros lugares do Brasil, incluindo o interior paulista, desdenhassem da região, reproduzindo uma frase que ficou conhecida e corria de boca em boca, por todos os lados: “O Paraná é só ilusão, quando não é barro é poeirão”.
Alheio a tudo isso, bem estabelecido como empresário e fazendeiro, Amedeo se fortalece e ganha ainda mais desenvoltura e experiência como empreendedor. Seu momento é profícuo e particularmente feliz: em 1946, ele se torna pai pela terceira vez, com o nascimento de Marisa. Em São Paulo, Tereza é esposa e mãe abnegada, sempre firme, alegre, dedicada aos filhos e incentivadora do marido. Quando ele retorna para casa, a família permanece o tempo todo junta, aproveitando para ir à praia, a clubes, a restaurantes.
O avião torna o trem obsoleto
Ainda na década de 1940, o trem que chegava ao norte do Paraná trazendo gente e mercadorias, começa a enfrentar um concorrente poderoso. Por ser lento, parar seguidamente e demorar muitas horas até chegar ao destino, deixando os passageiros entediados, esse meio de transporte foi sendo superado por outro, bem mais ágil, que vinha pelo céu.
O avião passa a ser usado intensamente, embora não sendo acessível para a grande maioria, que segue de mudança trazendo os familiares, os cacarecos e até alguns animais. Nesses casos, o único jeito é enfrentar a jornada, geralmente longa, por caminhos tortuosos a bordo de um caminhão, torcendo para que não chova. O trem também serve para carregar mudanças, embarcadas em vagões de cargas, onde as tralhas dividem espaço com vacas, porcos, gaiolas cheias de aves, cavalos e burros.
O impulso à aviação foi dado pelo governo de Getúlio Vargas ainda em 1941, quando lança a Campanha Nacional da Aviação e, em tempos de Segunda Guerra Mundial, pretendia criar uma reserva de pilotos civis em todo o país. A medida visava colaborar com os Estados Unidos e aliados, caso fosse necessário, contra a Alemanha e os demais países do eixo. A iniciativa resumia-se, basicamente, a dar um avião para o município que construísse uma pista.
Na região, Londrina sai na frente: constrói uma pista improvisada onde hoje se situa o patrimônio de Espírito Santo e funda o seu aeroclube. A chegada do primeiro avião na cidade não é exatamente um pouso. O piloto não consegue encontrar a pista e tenta aterrissar em um cafezal, onde atualmente é o Jardim Shangri-lá. O avião se despedaça inteiro, mas o piloto sobrevive. Depois, acabam mandando outra aeronave. A primeira turma de pilotos do aeroclube se forma em 1944 e é após a guerra que a história da aviação em Londrina e região entra em sua fase mais marcante. Como as condições do campo de aviação são muito precárias e o acesso difícil, as operações de voo acabam transferidas para a região onde agora é o aeroporto. A cidade torna-se a Capital Mundial do Café e é pelo ar que chegam importantes negócios, uma vez que começam a pousar ali os aviões de passageiros – entre os quais os Douglas DC-3, da Real Aerovias, da Sadia e, mais tarde, também da Varig e Panair do Brasil.
Depois da guerra, a indústria do café começa a se expandir, mas as condições das rodovias ainda permanecem ruins. O melhor caminho para os empresários é viajar de avião. A aviação alavanca o desenvolvimento das cidades, conforme registra o coronel Humberto Marcolino, em depoimento à revista da Associação Comercial e Industrial de Londrina (Acil), em julho de 2014. Em poucos anos o movimento aeroviário cresce absurdamente e a cidade se torna a terceira em movimentação de passageiros no Brasil, perdendo apenas para os aeroportos de Congonhas, em São Paulo, e Santos Dumont, no Rio de Janeiro. O tráfego era grande também em todas as outras cidades que possuíam pista de pouso, como Maringá e Nova Esperança, pois muita gente que havia enriquecido com lavoura ou comércio, não queria depender da vagarosidade dos trens e, muito menos, se arriscar em viagens por estradas malconservadas. Possuir um pequeno avião não era luxo e, no futuro, por curto período, o próprio Amedeo teria o seu, em sociedade com outros empresários.
Cafeicultura, um setor desorganizado
Tomando gosto pela vida de fazendeiro, Amedeo adquire na década de 1950 uma segunda propriedade rural em Paranavaí, município fundado em 1961, na região noroeste do estado. O imóvel de 200 alqueires (484 hectares) – comprado em sociedade com o amigo Pier Ferruccio Vecchi – ficaria pouco tempo nas mãos de ambos. O filho primogênito de Amedeo, Roberto, comenta que o pai e seu sócio não se simpatizaram com o lugar, que ficava a quase 80 quilômetros de Maringá. Se pensassem em plantar café ali, como fizeram outros produtores, eles não teriam sucesso, pois o solo arenoso, que muitos chamavam de “sangue de tatu”, não era fértil e tão cobiçado quanto os do basalto, sendo mais propício a pastagens.
Os cafezais plantados do arenito sofreriam também com o nematoide, um tipo de verme do solo, que ataca as raízes. Por causa dele, as lavouras plantadas com sementes ou “pés francos” se inviabilizariam rápido. Murchavam, tristes, até secar. O café só voltaria a ser cultivado naqueles solos, posteriormente, com mudas enxertadas em bases – também chamadas de “cavalos” –, de variedades tolerantes.
Sempre muito atento aos avanços da colonização regional, Amedeo observa que a cafeicultura seguia crescendo nas áreas de manchas férteis, mas o setor não conseguia organizar-se, havendo excesso de oferta que, em determinados períodos, deprimia as cotações. A essa realidade se somava a atuação de comerciantes que, aproveitando-se da desinformação dos produtores em relação ao mercado, aviltavam os preços.
Profundo conhecedor da agricultura na região, Luiz Lourenço, presidente do conselho de administração de uma importante cooperativa de Maringá, a Cocamar, explica que tanto os pequenos comerciantes locais quanto as empresas multinacionais compradoras de café, trabalhavam sem o mínimo de transparência. “O cafeicultor nunca sabia quanto valia seu produto”, lembra Lourenço, acrescentando que os mais abastados, se quisessem tomar pé da situação, viajavam até Santos, alguns deles em seus próprios aviões, para conversar com corretores e, aí sim, receber informações de mercado.
A grande maioria dos cafeicultores vendia mal e, como consequência, ia se endividando junto as instituições financeiras. O café gerava muita riqueza para o estado e o país, mas, no campo, os pequenos agricultores empobreciam. Suas lavouras demandavam pesado investimento com mão de obra, controle de doenças, pragas e ainda estavam sujeitas às geadas. Quando, no inverno rigoroso, cristais de gelo vestiam de branco os cafezais ao amanhecer, a beleza de tudo aquilo seria melancólica: em poucas horas, o verde daria lugar ao negro da requeima e aqueles valentes produtores, sentiriam a dor dilacerante da perda.
No Guaiapó, assim como em outras comunidades rurais de Maringá, os moradores – proprietários de sítios das imediações – se mobilizaram em mutirão para construir uma capela. Em 1949, num terreno doado pela família Nunhes, Armando Crippa liderou o movimento e eles começaram a levantar a igreja, que foi consagrada a Nossa Senhora Aparecida. A iniciativa contou também com os esforços das famílias Limonta, Feltrin, Calvi, Bulla e outras, sendo parte da madeira doada por Amadeo. A outra parte veio de árvores cortadas nas propriedades e serradas na Serraria Villanova, pertencente ao primeiro prefeito de Maringá, Inocente Villanova Júnior. A obra foi concluída em 1955, com missa e quermesse, tornando o lugar um ponto de encontro nos finais de semana, onde as pessoas se encontravam também para assistir jogos de futebol e frequentar as vendas ali próximas.
Umuarama, a derradeira etapa
A região de Umuarama foi a quarta e última etapa do movimento de colonização promovido nas terras adquiridas pela CTNP (e depois CMNP). Quando esta última finalizou negociação para a compra de 40 mil alqueires da Gleba Cruzeiro, em 1952, abrindo perspectiva para mais uma onda de vendas de lotes rurais e urbanos em condições facilitadas, milhares de pessoas de várias partes do Paraná e do país começaram a se assanhar, ansiosas para aproveitar a oportunidade.
Uma corrida iniciou rumo a essa nova fronteira, movimentando as estradas de terra e as pistas de pouso. E, tão célere quanto das outras vezes, a mata foi perdendo espaço para as propriedades de café e para a formação de povoados. Devastação, fogo, fumaça de esconder o sol e arder os olhos. Gente habitando ranchos improvisados, manejando enxadas, machados, foices. As cenas se repetiam.
O agricultor Sebastião Teixeira de Moraes comprou em 1956 o seu pequeno lote na estrada Canelinha, ainda uma picada que atravessava o mato entre o patrimônio de Umuarama e a cidade sede, Cruzeiro do Oeste. Moraes lembra que o lugar onde instalou sua propriedade se encheu rapidamente de vizinhos, quase todos lidando com café.
Foi esse povo que, de uma feita, segundo ele, se juntou para construir ali, no cruzamento da Canelinha com a estrada Paca, a capela de São Pedro:
– Todo domingo tinha missa e a igreja ficava cheia, era um tempo animado!
Dez anos após a fundação do município, em 1961, Umuarama já teria mais de 50 mil habitantes, a maior parte deles vivendo na zona rural. Mas o tempo não tardaria a revelar que, diferente da maior parte dos outros municípios, Umuarama prescindia de vocação para o café. A exemplo de Paranavaí, o solo arenoso, impróprio à cafeicultura, foi sendo gradativamente convertido em pastagens, o que inviabilizou pequenos sítios e forçou a migração, para as cidades, das famílias moradoras no campo. O café fez sucesso sim, mas em outras regiões próximas, onde empresas colonizadoras como a Biyngton e a Sinop fundaram Iporã, Pérola, Altônia e São Jorge do Patrocínio, todas populosas e por muitos anos dependentes dos cafezais. Com a forte geada de “canela preta” de 1975, todo aquele importante reduto cafeeiro sofreu um baque do qual não se refez. As cidades perderam, em breve intervalo de tempo, mais de dois terços da população e suas economias se enfraqueceram.
Com a família em São Paulo e uma fazenda para cuidar em Maringá, Amedeo, já com mais de 50 anos, transfere a Serraria Aratimbó de Arapongas para Umuarama, mantendo a sociedade com Pier Ferruccio Vecchi. Antes, ele havia examinado o potencial de cidades como Cianorte e Cruzeiro do Oeste. Com isso, quase não tem parada e se obriga a uma cansativa rotina, ora cortando estrada poeirenta, ora cruzando os céus. Não descuida das obrigações de marido e pai, mas precisa estar empenhado na direção da propriedade de café, onde mantém empregados, sem deixar de lado a rotina dos trabalhos na empresa. Depois da previsível decadência da atividade madeireira em Arapongas, onde a oferta de matéria prima diminuíra, a Aratimbó ganhara fôlego na nova cidade e seguia à carga total, suprindo a demanda por madeira para construções que iam sendo erguidas com pressa, por todos os lugares.
Apesar dessa correria, foi na década de 1950 que o italiano e sua esposa começaram a viajar a cada dois anos, pelo menos, para a Itália, a turismo, onde ficavam cerca de um mês. Ele revia familiares e apresentava à Tereza lugares sobre os quais falava com saudosismo. No Brasil desde 1922, sentia-se tão brasileiro quanto qualquer um nascido aqui, mas não desejava perder suas raízes. Para Tereza, se a viagem a deixava contente por poder conviver mais com o marido, sem aqueles hiatos de quando ele embarcava para o Paraná, onde permanecia durante vários dias, por outro lado ela sofria com a distância dos filhos, dos quais nunca se separava. Em São Paulo, sua alegria tão natural, às vezes, se desmanchava, dando lugar a um sentimento triste quando Amedeo, em companhia dos dois meninos, demorava a retornar de Arapongas. Certa vez, muito deprimida, ela tomou nos braços a filha pequena e decidiu embarcar no primeiro avião com destino a Londrina, de onde seguiu em carro de praça até aquela cidade. Ao chegar, finalmente, estava aliviada e em paz.
Sempre que possível, o pai levava os dois filhos consigo para que ambos conhecessem melhor sobre os negócios da família. Em determinado momento, no futuro, certamente ambos estariam preparados para ajudá-lo e, quem sabe, assumir a empresa e a fazenda. Em relação a Roberto, o italiano tinha para si que o menino demonstrava jeito para engenharia. Mais convicto disso ficou quando, ao presenteá-lo com um jogo de peças para montar, viu que o garoto permanecia horas entretido. Quanto ao mais novo, Hugo Francisco, pensava estimulá-lo para os lados da agronomia.
Roberto se recorda de viagens que a família fez de trem de São Paulo a Arapongas e também por via aérea.
– Ele gostava de tudo muito correto, era bem exigente, lembra.
Um dia, quando Amedeo e os dois filhos embarcaram num avião em Maringá com destino a São Paulo, o italiano irritou-se ao ver que duas mulheres haviam ocupado os assentos a eles reservados. Viajou contrariado, mas, na chegada, fez questão de queixar-se à companhia.
– Ele tinha pavio curto e podia aborrecer-se com qualquer coisa que, no seu entender, não estivesse certo, comenta o filho. Se uma conversa mais ríspida avançasse para uma discussão, o italiano, nervoso, elevava o tom de voz, mas não era de brigar.
Roberto conta também que o pai era disciplinador e, às vezes, chegava a exagerar com os filhos, impondo-lhes ordens que pareciam descabidas. Quando a família recebia parentes para comemorar o aniversário de um deles, por exemplo, os meninos já estavam avisados: teriam que ir para a cama às 20:30, como faziam todas as noites.
– Quando ele nos olhava, apontando a direção do quarto, não tinha conversa, diz. Amedeo era autoritário e exigente, impunha respeito sem nunca lançar mão de corretivos e, ao mesmo tempo, demonstrava ser amoroso e ter um grande coração. Sempre que chegava de suas viagens, costumava presentear as crianças.
Nada de improvisos
O italiano gostava de ver tudo na mais perfeita ordem e, claro, não poderia ser diferente com seus negócios. Ele se preocupou desde o início, por exemplo, em registrar todos os seus funcionários, assegurando-lhes os direitos de lei. Apesar de, nas décadas de 1930 e 1940, a maior parte das empresas instaladas nas incipientes cidades do sertão não cumprirem inteiramente com suas obrigações trabalhistas, beneficiadas pela falta de fiscalização e por uma certa frouxidão das autoridades, Amedeo pensava diferente. Metódico, organizado, avesso a improvisos e muito exigente com os que trabalhavam consigo, ele apenas queria ser correto.
Em 1950, a serraria em Arapongas somava 57 funcionários, sendo conduzida por um português chamado Félix de Oliveira Calvo, o mestre, dono do maior ordenado: 2,5 mil réis. Ainda era expressiva a quantidade de estrangeiros entre os empregados, doze, dos quais cinco italianos. Havia nove motoristas, chamados até então de “cheauffeures”, sem contar seus três ajudantes. De toda a turma, o que mais tinha tempo de casa era o motorista Thadeu Sviontek, admitido em 1938.
Oito anos mais tarde, em 1958, já refletindo o declínio da oferta da madeira, o número de funcionários caíra para 22.
Em Umuarama, mesmo quando a fiscalização passou a ser mais rigorosa, o italiano não tinha com o que se preocupar, diferente do que se suspeitava em relação a outras serrarias, cujos donos, para se livrarem de pesadas autuações, dizia-se, aceitavam fazer acertos com os fiscais. E estes, batendo às portas da Aratimbó, na tentativa de descobrir algum deslize com o qual pudessem enquadrar seu proprietário, insistiam em examinar detalhadamente toda a documentação, mas sem o êxito que esperavam lograr. Rigorosos, chegavam a chamar um a um os funcionários para checar se todos estavam devidamente registrados. Em uma das “batidas”, um dos fiscais teria dito que a empresa apresentava exemplar documentação, recolhendo todos os tributos em dia e nunca dando margem a irregularidades.
A contabilidade dos negócios era feita há muitos anos por um profissional de São Paulo, Rocco Giesulli, um amigo de origem italiana, muito estimado por Amedeo. Caprichoso, esse contabilista deixava a documentação sempre em ordem, evitando preocupações e aborrecimentos ao seu cliente. No entanto, em determinada época, Giesulli, já de certa idade, começou a se confundir com números, cometendo pequenas falhas matemáticas que, para Amedeo, com sua mania de examinar tudo em mínimos detalhes, eram inconcebíveis. Quando reclamava ao contabilista, com aquele seu jeito inflamado, só faltava ao italiano descabelar-se.
Os filhos
Em 1956, concluído o ensino secundário de Roberto, o pai colocou-se diante dele com uma conversa da qual a mãe já sabia e que lhe caiu como um desafio: cursar engenharia numa importante universidade italiana, a Escola Politécnica de Turim. A ideia, a princípio, inquietou o jovem, imaginando as dificuldades que encontraria, a barreira da língua, a distância da família. Mas preparou-se e por mais que se sentisse pronto, Roberto não tinha como antever o quão difícil e angustiantes seriam os seus próximos anos. Matriculado no biênio propedêutico daquela instituição, enfrentou logo exames orais, seguindo-se uma rotina em que era sempre muito exigido. Assim, por mais esforçado e estudioso que fosse, percebeu logo que aquilo não seria para ele. De volta, fez o curso de técnico em eletrônica no Instituto de Eletrônica Eduardo Prado e, posteriormente, graduou-se em administração de empresas pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Hugo Francisco, por sua vez, foi direto para a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba, onde cursou engenharia agronômica. Marisa fez comunicação social.
Eventualmente Roberto acompanha o pai em suas constantes viagens ao Paraná. Ambos embarcam num voo da Sadia, ainda muito cedo, com escala em várias cidades e chegando a Maringá no começo da tarde, onde um funcionário da serraria os aguarda. Até Umuarama, distante 180 quilômetros, seguem num jipe, cumprindo um percurso cansativo, por estrada de terra. Mal deixam a cidade e o veículo já está em Paiçandu, tomando a direção de Água Boa e Doutor Camargo, até espreitar as barrancas do Ivaí, cuja transposição se fazia de balsa, após uma demorada fila de caminhões e automóveis. Do outro lado, a estrada se embrenha em longo trecho no sertão de mata fechada, já em chão de Terra Boa, até que avistam Jussara e, logo adiante, Cianorte. Mais um tanto para chegar a Tapejara, Cruzeiro do Oeste e, enfim, lá pelo final da tarde, quase à noitinha, se deparam com os primeiros sinais de Umuarama.
No caminho, Roberto ia observando aquele mundo de cafezais a se perder de vista, fazendo apagar da memória a floresta que ali existiu. Via povoados em formação, movimento de veículos, transeuntes, trabalhadores levando ferramentas nos ombros, mulheres humildes com filhos pequenos, famílias agrupadas em carroças, caminhões carregados de toras e muitos outros transportando sacos de café e todo tipo de mercadorias.
O cansaço começa a incomodar
Amedeo já não tem idade para continuar naquele ritmo. Com o peso de seus mais de sessenta anos, chega a um lugar e já está com o pensamento em outro. As demandas da fazenda em fase de estruturação exigem sua constante presença em Maringá, o mesmo acontecendo na serraria em Umuarama. Mesmo assim, os negócios ficam a maior parte do tempo nas mãos dos empregados, gente de confiança, mas sem uma administração mais cuidadosa e atenta a todos os detalhes. Em São Paulo, nos seus momentos de descanso, ele começa a se queixar das dificuldades com a esposa. Como a produção de café estava desorganizada no país, safras cada vez maiores aviltam os preços e levam os cafeicultores a períodos de crises e desespero que pareciam nunca terminar.
Em 1963, os cafezais do Paraná são assolados, mais uma vez, por uma geada de grandes proporções. A safra do ano seguinte estaria perdida. Mas a desdita dos produtores não termina aí: o frio transformara grande parte da vegetação em palha. A isso se seguiu um longo período de estiagem – comum em épocas de inverno mais intenso. Está o ambiente preparado para outro flagelo: os incêndios, cujos focos irrompem em muitos lugares ao mesmo tempo. As labaredas avançam rapidamente para devorar fazendas inteiras em poucas horas, matas, campinas, morros, calcinando rebanhos e levando moradores ao pânico, refugiados onde fosse possível abrigá-los. Entre as medidas para enfrentar mais essa dramática situação, os chamados aceiros demandam contingentes de trabalhadores que, em mutirão, labutam na abertura de corredores separando as matas, lavouras e pastos para depois, curiosamente, atear fogo naquelas onde o incêndio se avizinha. Assim, o inferno é combatido com o próprio. Nas cidades, a população inala uma fumaça persistente, da qual não consegue escapar, enquanto as cinzas inundam os céus e se precipitam sobre as ruas, casas e quintais feito uma nevasca negra. À noite, em lugar do breu, o firmamento continua avermelhado como se ainda fosse final de tarde. Na linha do horizonte, mesmo a uma imensa distância, a impressão é que o sol permanece em vigília. As notícias dos incêndios que fazem o Paraná arder, ganham destaque na imprensa, deixando apreensivos os familiares de Amedeo. E este, ao ser questionado, argumenta: é o destino que traçara para si, não há como ser diferente, ao menos por enquanto. Em alguns anos, quem sabe, faria negócio com a fazenda, cujas terras estariam mais valorizadas. Quanto a serraria em Umuarama, a tendência é de um gradativo esgotamento, algo que já se percebia. Em poucos anos, com certeza, os custos a tornariam impraticável.
Não apenas a renda dos Boggio depende ainda dos negócios mantidos no Paraná, como dezenas de empregados e suas famílias deles sobrevivem. Para Amedeo, a rotina é extenuante, não tanto pelo deslocamento de São Paulo a Maringá, feito em avião confortável, mas sobretudo pela distância entre Maringá e Umuarama, a ser completada de jipe por uma estrada que ainda deixa a desejar. De 1960 a 1964, ao ser eleito governador do Estado, Ney Braga pauta sua administração por investimentos em muitas obras de infraestrutura, como a construção de estradas. Seu sucessor, Paulo Cruz Pimentel, de 1964 a 1967, dá continuidade à essa política, pavimentando, entre outras, a PR-323, entre Maringá, Cianorte e Umuarama, incluindo a edificação de uma ponte sobre o Ivaí. As melhorias são consideráveis. E só no começo da década de 1960 é que Maringá, emancipada em 1952 de Mandaguari, passa a contar com o fornecimento estável de energia elétrica, aposentando os velhos e precários geradores a diesel. Nessa época, a população do município passa de 90 mil habitantes, é sede de bispado desde 1957 e está servida por linha ferroviária da Rede Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC) que ali havia chegado em 1953.
A fatalidade
A Sadia Transportes Aéreos mantém um voo diário que decola no início da manhã do Rio de Janeiro e faz escalas em São Paulo, Curitiba, Londrina e Maringá. É o preferido de Amedeo, que chega a Maringá no início da tarde, ainda a tempo de almoçar. Em 1967, a companhia se regozija de sua frota nova, formada por modernos turbo-hélices Dart-Herald, de fabricação inglesa, com apenas dois anos de uso.
De vez em quando, um ou ambos os filhos o acompanham nas viagens, mas naquele 3 de novembro o italiano embarcaria só. Tereza reclama de sua decisão de partir numa sexta-feira: poderia aproveitar o final de semana em casa e ir na segunda. Mas o marido é irredutível, quer fazer logo o pagamento dos funcionários, o que é sagrado para ele. Se ficar, será um homem contrariado, certamente arrependido. Tantos lá, afinal, dele dependem e, sendo início de mês, há pagamentos a honrar.
O dia amanhece nublado, a temperatura é amena e há previsão de chuva no Paraná. Como de costume, Amedeo veste sua capa, apanha a pequena mala e, caminhando em direção ao portão, se despede da família. Ganhando a rua, embarca num táxi que o conduz ao Aeroporto de Congonhas, do qual é contumaz frequentador. Por volta das 10h, ele e outros 22 passageiros caminham em direção ao reluzente Dart-Herald, modelo HPR.7 com capacidade para 58 passageiros. Presa à asa direita e ao chão, uma faixa os saúda: “Esse é o novo avião que a Sadia está usando em suas linhas”.
O turbo hélice PP-SDL número 190 havia sido fabricado pela Handley Page em Woodley Town, Reading, Inglaterra, e estava equipado com 2 turbo propulsores de 1.425 cavalos força cada para elevar o aparelho a 8.140 metros (29.700 pés) numa velocidade de 435 quilômetros por hora. Um avião novo: seu voo inaugural ocorrera apenas dois anos antes, em 2/11/1965, e no dia sete do mês seguinte já operava comercialmente pela Sadia. Completaria 3.192 horas de voo naquela manhã.
Por ser uma sexta-feira, logo após o feriado de finados, o avião segue com apenas 25 pessoas, incluindo os cinco tripulantes. Amedeo acomoda-se, afivela o cinto e, exatamente às 10:30, o avião decola para um voo com previsão de duração de 60 minutos até o Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, a primeira escala da viagem a Maringá. Como sempre faz, quando não está com um jornal ou livro nas mãos, o italiano cochila. Mas aquele voo promete não ser tão tranquilo: com o céu carregado, o avião sacode, mantendo os passageiros acordados e tensos. À medida que a aeronave se aproxima da Serra do Mar, o tempo vai ficando pior.
Mesmo com seus dois experientes pilotos, o Dart-Herald está vulnerável. Os equipamentos eletrônicos se encontram desligados e o voo se baseia no relógio, mas os pilotos não percebem que a aeronave enfrenta forte vento de proa que a atrasa alguns segundos a cada quilômetro avançado, em relação ao último ponto de referência. Momentos mais tarde, já em movimento de aproximação do Afonso Pena, o comissário de bordo, Roberto Fonseca, alerta os passageiros para que travem seus cintos. A passageira Silvia Tavares levanta-se para conferir se o filho pequeno está preso aos cintos, ao mesmo tempo em que outro passageiro, Armando Cajueiro, sofrendo náuseas, se nega a afivelar-se.
O avião está a apenas 25 quilômetros da cabeceira da pista, nos quatro minutos finais da viagem. Quando o relógio marca 11:30, os pilotos descobrem, assustados, que não há nada que poderiam fazer. A uma altitude de 4.635 pés (1.412 metros), o Dart-Herald tem diante de si, descortinando-se muito próximo em meio a névoa, a grande face do Morro do Carvalho, um dos que desenham o oscilante relevo e compõem os contrafortes da Serra do Mar. A copa das árvores surge como outro obstáculo.
Ao amanhecer do dia seguinte, quando as equipes de resgate conseguem, enfim, escalar a difícil inclinação de 80 graus e chegar ao íngreme local do acidente, uma surpresa as aguarda. Ao avistarem os destroços, escutam uma sequência de batidas em metal. É o desesperado pedido de socorro feito por Silvia Tavares, a mulher que se levantara para verificar o afivelamento do filho. Somente ela e outro passageiro estão vivos, além de dois tripulantes que, mais tarde, morrerão no hospital.
No maior acidente aéreo da história do Paraná, ironicamente apenas os que foram arremessados por não estarem presos às poltronas pelos cintos de segurança no momento do impacto, é que escaparam com vida.
O jornalista Luiz Roberto Souza Queiroz, de O Estado de S. Paulo, um dos profissionais da imprensa que conseguiu chegar ao local, descreve o que viu: “Na manhã seguinte, névoa intensa, a Polícia Militar nos leva em jipes até a base do morro onde deveria ter caído o avião e toca a andar horas e horas pelo meio da mata, abrindo picada com facão no meio de bambuzais, espinheiros, junto com o presidente da Sadia, Omar Fontana, que foi conosco até chegar ao topo descampado do morro”.
Segundo Queiroz, o avião batera de tal maneira na terra, desestabilizado pelas copas das árvores, que a violência do choque arrancou o teto da cabine de passageiros e eles foram lançados para fora. “Detalhe que jamais esqueci, o sapatinho de uma criança preso num galho de árvore, com a meia ainda dentro dele, pois a força da batida arrancara a roupa do garoto de 5 ou 6 anos, que jazia morto, mas com rostinho tranquilo, a 50 metros do sapato.”
O jornalista afirma ter conversado com os poucos sobreviventes, inclusive com a mãe da criança morta. “Ela tinha as pernas quebradas, a roupa inteiramente rasgada, mas, ainda em choque, parecia não sentir muita dor. Aguardava o socorro por helicóptero, que só chegou horas mais tarde quando a névoa se dissipou. Ela contou que ia a Curitiba para um casamento. Descreveu a falta total de visibilidade que levou ao acidente, a sensação desesperadora quando o avião praticamente se desfez e falava tentando achar uma posição melhor, as costas apoiadas no toco de uma árvore que o avião cortara rente ao solo. Eu já me afastava quando a moça me chamou, mostrou as flores que levava para o casamento ainda envoltas num resto de papel de seda rasgado e pediu: ‘por favor, moço, coloque essas flores junto ao meu filhinho morto, aquele ali, é tudo que posso fazer por ele agora’. E só então começou a chorar, bem de mansinho.”
Roberto, filho de Amedeo, dirigiu-se a Curitiba para fazer o reconhecimento e, em diálogo com integrantes das equipes de resgate, soube que o corpo do pai fora encontrado praticamente intacto, mas com um detalhe intrigante: estava envolvido na capa de chuva que colocara em casa, antes de sair. “Seria improvável que ele viajasse com aquela capa, não ficaria confortável”, comenta, justificando que, com certeza, logo ao embarcar e antes de acomodar-se na poltrona, Amedeo a teria tirado. Ele disse ter ouvido também que a queda do avião somente ocorreu porque o mesmo teria, antes, resvalado na copa de algumas árvores.