O desafio para quem precisa escoar a produção é a falta de uma estrada de ferro. Só mais tarde, quando os britânicos adquirem grandes glebas de terras nas regiões norte e noroeste, para desenvolver o seu projeto de colonização, é que se pode acreditar, efetivamente, na construção de uma ferrovia.
As botas do fazendeiro Antônio Barbosa Ferraz Júnior, o major Tonico Barbosa, estão lambidas pelo barro vermelho e grudento do norte pioneiro do Paraná. É homem determinado, que enxerga longe. Se alguém pergunta, ele se empolga fácil e tem a resposta na ponta da língua:
– O Paraná é terra de grande futuro!
Produtor de café em Ribeirão Preto, o major, pai de Bráulio e Leovegildo, nomes igualmente legendários no começo da história do norte paranaense, conhece como ninguém a qualidade das terras ainda recobertas de mata. Seu projeto é fazer nascer nesse chão um cafezal de “encher os olhos”.
O que hoje é chamado de norte velho ou pioneiro do Paraná compreende uma vasta faixa entre os rios Itararé, Tibagi e Paranapanema, a primeira a ser penetrada no movimento comandado por paulistas e mineiros. Eles migram em busca de terras, ainda no período imperial, para plantar café. A cultura leva ao surgimento de fazendas e povoados.
O relevo apresenta regular distribuição hídrica, em altitudes que variam de 400 a 700 metros, com colinas mansas, vales pouco profundos, espigões abaulados e de fácil acesso. O solo vermelho de Jacarezinho ainda está sob a mata fechada, podendo ser comprado diretamente do governo do estado a preço módico. Jacarezinho é a cidade mais antiga da região, fundada em 1900.
A produção cafeeira ganha impulso principalmente após o Convênio de Taubaté, celebrado em 25 de fevereiro de 1906, quando os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais tentam coibir a expansão das lavouras. As atenções se voltam, naturalmente, para o desconhecido e pouco explorado norte do Paraná, onde não há restrições.
As terras têm preço baixo porque são devolutas, remanescentes ainda do Tratado de Tordesilhas e, portanto, esquecidas há séculos. No período imperial, eram patrimônio do Governo Central. Pela disposição referente ao artigo 64 da Constituição de 1891 e a Lei Estadual de Terras nº 62, de 20 de dezembro de 1892, e respectivo Regulamento pelo Decreto nº 1, de 8 de abril de 1893, o domínio das terras devolutas passou para o estado. *1
O governo paranaense ensaia um plano para desenvolver a região: negocia glebas com companhias colonizadoras e grandes fazendeiros. Mas, longe de tudo, o lugar não prospera, pois sequer possui vias de acesso.
Desbravadores se aventuram pela mata e, com eles, grupos de trabalhadores empreitados para a derrubada, o que fazem a golpes de machados e foices. Ao fim da devastação, uma onda de fogo arremata o serviço e a terra já pode ser cultivada.
É assim que surgem os cafezais, uma aposta que agora vai demandar lavradores que se fixam em colônias instaladas nas fazendas. O serviço não tem trégua: é preciso abrir covas, semear, cuidar das pequenas plantas, capinar o mato…
Sem nenhuma dúvida quanto ao potencial das terras e de seu futuro como região produtora de café, o major Tonico Barbosa canaliza para cá os seus investimentos, sendo seguido por muitos outros fazendeiros. Entre 1909 e 1910, apesar das circunstâncias, o Paraná já exporta mais de 500 toneladas do grão.
Enquanto São Paulo toma medidas para sustentar os preços do produto, após crises que resultam do aumento excessivo da oferta, o Paraná estimula abertamente a produção. E, nesse último estado, a rápida expansão da cafeicultura “chacoalha” as suas sossegadas lideranças, que também têm motivos para se preocupar. Por conta da procedência da maior parte dos cafeicultores, estes mantêm seus vínculos com São Paulo, em detrimento de Curitiba. Como o produto é mandado para Santos por meio da Estrada de Ferro Sorocabana, o norte paranaense mais se parece com um quintal, um prolongamento das terras paulistas.
Em 1915, alarmado com o “Perigo Paulista” e na tentativa de estancar a sangria de divisas, o governo do Paraná reivindica a construção de uma estrada de ferro para ligar os centros de produção do café ao porto de Paranaguá. Nesse objetivo, anuncia que o chamado ramal do Paranapanema iria implantar em 1918 o trecho Jaguariaíva-Wenceslau Brás, com cerca de 50 quilômetros. Mas a obra avança em ritmo extremamente vagaroso. Ocorre que a Brazil Railway Co., concessionária da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, fora encarregada da construção do ramal. Os investimentos seriam ressarcidos com a receita auferida pelas linhas de concessões da empresa no estado. O problema é que os resultados do fraco movimento financeiro da São Paulo-Rio Grande, não permitiram acelerar os trabalhos de implantação da linha, em parte emperrados devido aos altos custos do material importado.
*1 Citação em “A Cafeicultura Paranaense 1900-1970”, de Nadir Aparecida Cancian (Graficar, 1981)
Falta estrada. A saída é o trilho
Os cafezais se desenvolvem e, ao cabo de três anos, na primavera, seus ramos estarão cobertos de perfumadas flores brancas para, no outono seguinte, haver uma generosa carga de grãos. As safras vêm exuberantes, confirmando às expectativas quanto ao vigor da terra fresca. Nas fazendas, milhares de homens e mulheres se levantam cedo para dar conta do serviço. É o momento da derriça dos grãos, de peneirar, ensacar e transportar para os terreiros, onde vão ser lavados e, aos montes, depositados para desidratar ao sol, penteados com rastelos. Finalmente secos, são acondicionados em sacas e armazenados em tulhas. É a riqueza que, aos poucos, será comercializada para o mundo, passando por outras etapas antes do consumo.
Quando um apreciador na distante Nova York ou Milão debruçar-se diante de uma xícara fumegante de café, terá diante de si uma bebida de características peculiares por seu aroma e paladar, resultado de uma saga que envolveu muitas mãos em jornadas por lugares inimagináveis no interior do Brasil.
Mas há um dilema no norte do Paraná: à medida que a produção aumenta, como escoá-la?
O transporte, a esta altura, se faz duramente até Ourinhos – entroncamento estratégico e desde 1908 o ponto final da Estrada de Ferro Sorocabana, distante 22 quilômetros de Cambará, por caminhos que não resistem às chuvas. Tamanha precariedade pesa no bolso dos fazendeiros.
Por que, então, não viabilizar uma estrada de ferro ligando Jacarezinho a Ourinhos? Com o progresso batendo às portas do Paraná, onde a lavoura vai produzir grandes somas em riquezas, está mais que justificado o pleito dos produtores de uma concessão junto ao governo estadual. Pelos trilhos o desenvolvimento vai chegar mais depressa ao vale do Paranapanema e as terras terão outro valor. Como em São Paulo, os trilhos devem ficar próximos dos cafezais.
A obra começa em 1912 e avança a passos lentos. Quando se pensa que vai deslanchar, empaca outra vez, dá uma arrancada e murcha. Tanto isso se repete que a estrada de ferro antes aclamada como uma conquista histórica, se torna motivo de chacota: a “ferrovia dos desmaios”. Os cafeicultores esbravejam com o pouco empenho das autoridades, enquanto o povo se diverte.
Dezoito anos são consumidos na construção do ramal do Paranapanema, entre 1912 e 1930, com uma extensão de apenas 152 quilômetros, média de 8,4 quilômetros concluídos por ano. A linha atravessa, entre outros, os municípios de Jacarezinho, Joaquim Távora e Santo Antônio da Platina. Em 1924 os cafezais paranaenses estão assim distribuídos: sete milhões de pés em Jacarezinho, seis milhões em Ribeirão Claro, dois milhões em Santo Antônio da Platina e dois milhões em Siqueira Campos[1].
[1] Extraído de “As Estradas de Ferro do Paraná 1880-1940”, de Lando Rogério Kroetz.
A água do Bugre
Muito antes de a linha ficar pronta, o major Tonico Barbosa e um grupo de produtores por ele organizado, se fixam em um lugar que viria a dar origem a Cambará, fundada em 1924, onde as terras férteis podiam ser adquiridas a preços irrisórios.
Depois de investir na compra de cinco mil hectares de matas entre Cambará e Ourinhos, onde faz nascer a Fazenda Água do Bugre, o major começa a derrubada do mato e, ato contínuo, a plantação de um milhão de covas de café.
A maior dificuldade não poderia ser outra: a tão conhecida falta de estradas para escoar a safra. Então, escaldado com o descaso do governo e sem querer depender outra vez das autoridades para a execução da obra, ele se associa a outros investidores e obtêm uma concessão para construir, com os próprios meios, a desejada linha.
– Quem precisa, tem que fazer, não adianta ficar esperando pelos outros!
Assim, pelo Decreto estadual nº 896, de 2 de agosto de 1920, é concedida em nome do sócio Antônio Ribeiro dos Santos e outros, à companhia que organizassem, a construção, uso e gozo de uma estrada de ferro, que, partindo de um ponto conveniente entre Jacarezinho e a barranca do Rio Paraná, avançasse até Cambará, daí atravessando os rios das Cinzas e Laranjinha e se prolongasse até Jatahy. Em junho de 1921, os concessionários constituem uma sociedade anônima para levantar capital e construir a ferrovia, tendo sido subscritos oitocentos mil contos de réis em ações.
A sociedade é formada por Antônio Ribeiro dos Santos, Gabriel Ribeiro dos Santos, o major Tonico Barbosa, Willie da Fonseca Brabazon Davids, Manoel da Silveira Corrêa e as famílias Junqueira e Procópio. Para o projeto e a execução, contratam o engenheiro paulista Gastão de Mesquita Filho, sócio da empresa Mesquita e Irmão Ltda. Ele possui experiência, realizara levantamentos topográficos e havia executado obras para a Estrada de Ferro Noroeste, em Bauru.
No Departamento do Contencioso, do Tesouro do Paraná, são assinados o contrato e os respectivos termos relativos à concessão para a construção da estrada de ferro.
– Agora a coisa vai, repete o animado major.
O grupo organiza a Companhia Ferroviária Noroeste do Paraná, que inicia suas atividades construindo os primeiros quilômetros com recursos disponíveis, porém não suficientes, para concluir com desejável rapidez os trabalhos do trecho ferroviário Ourinhos-Cambará.
A empresa enfrentou dificuldades para se entender com a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, detentora daquela outra linha até Jaguariaíva, sobre o ponto de entroncamento. Era por esse trecho que o governo do Paraná pretendia ligar as regiões produtoras de café ao porto de Paranaguá e resolver o problema do desvio das safras para Santos.
Apesar do “Perigo Paulista”, a direção da Companhia consegue um acordo com o governo paranaense para estabelecer o ponto de partida à margem esquerda do Rio Paranapanema, ligando a ferrovia a Ourinhos, justamente o corredor para escoar as safras de café até Santos.
Nessa época, as autoridades do Paraná estavam mais preocupadas com a crise da erva-mate, cultura que representava o principal item econômico do estado. Como a Argentina, grande importadora do produto, caminhava para ser autossuficiente, os embarques do estado minguavam.
O contratempo
Presidida pelo major Tonico Barbosa, a Companhia Ferroviária Noroeste do Paraná inicia a implantação de um ramal de 29 quilômetros de Ourinhos a Cambará. O objetivo é interligar a principal zona cafeeira paranaense à Estrada de Ferro Sorocabana e agilizar o encaminhamento da produção até Santos.
Os trabalhos começam a todo vapor em 1923, exigindo elevado aporte de recursos. Em depoimento para o livro “Colonização e Desenvolvimento do Norte do Paraná”, editado em 1975 pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) – sucessora da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP) –, de autoria de Rubens Rodrigues dos Santos, o engenheiro Gastão de Mesquita Filho comenta:
– Dirigi pessoalmente desde a escavação até os cortes, bueiros, assentamento de trilhos, pontes e estações.
Tendo que custear o trabalho das inúmeras famílias empregadas em suas propriedades, construir a infraestrutura, dar sequência ao dispendioso projeto de expansão das lavouras e realizar o transporte da produção da maneira como fosse possível, os fazendeiros desembolsam altas quantias para viabilizar a ferrovia, recorrendo a financiamentos junto ao mercado e contando com quase nenhuma ajuda oficial.
Com 21 quilômetros de extensão, o primeiro trecho até as localidades de Presidente Munhoz e Leoflora (município de Jacarezinho) fica pronto em julho de 1924. O segundo, com mais 8 quilômetros de trilhos, chegando enfim a Cambará, é concluído no ano seguinte.
A abertura do tráfego por essa linha coincide com um grave acontecimento em São Paulo: o movimento revolucionário nos anos de 1923 e 1924. A capital paulista vive um cenário de guerra, ocupada por militares, que exigem a renúncia do presidente Arthur Bernardes, a mudança do sistema eleitoral, a implantação do ensino gratuito e a garantia de autonomia do poder judiciário. Como há uma ampla adesão civil, com vários dias de batalhas pelas ruas, o governo federal manda bombardear a cidade, causando destruições no Brás, Belenzinho, Mooca, Ipiranga e Cambuci, o que resulta em mais de 500 mortes e enorme quantidade de feridos. Com isso, parte da população abandona São Paulo e se refugia no interior.
Distante dali, no sertão paranaense, é inaugurada em agosto a estação de Cambará, no quilômetro 30, enquanto uma ponte provisória liga os dois estados, sobre o Paranapanema. Essa estrutura vai dar lugar a uma ponte metálica definitiva, concluída em fevereiro de 1927.
Uma missão britânica no Brasil
No final de 1923, ao tomar conhecimento da vinda de uma comitiva britânica ao Brasil, em missão oficial, para se encontrar com o presidente Arthur Bernardes no início do ano seguinte, os fazendeiros paranaenses que investem na construção da estrada de ferro entre Ourinhos e Cambará, ficam alvoroçados. Eles não querem deixar escapar a chance de apresentar aos visitantes a oportunidade de investirem na imensa região de terras férteis e baratas a ser desbravada no norte do Paraná. Sabem que se o grupo representante do império mais poderoso do mundo demonstrar interesse em investir nas terras ainda recobertas de matas, como faz em muitas regiões do planeta, certamente assumirá a ferrovia. Um negócio, sem dúvida, bom para todos.
Denominada Montagu, a missão composta por financistas e técnicos em diferentes áreas, sob a liderança do Lord Edwin Montagu, chega a 1º de janeiro, quando o navio britânico Araguaya atraca no Rio de Janeiro. O tempo é firme, faz um calor abafado e, sem delongas, a caravana dá início ao trabalho, permanecendo duas semanas em meio a uma série de reuniões com autoridades e empresários. Já no dia 2, começam as tratativas com lideranças brasileiras na residência de Henri Lynch, representante no Brasil do influente grupo financeiro inglês N. M. Rothschild & Sons.
Há versões diferentes quanto ao verdadeiro propósito dessa trupe. A mais conhecida dá conta de que, em razão da enorme dívida brasileira para com a Inglaterra, o presidente da República, Arthur Bernardes, teria convidado especialistas daquele país a estudar a debilitada economia brasileira, sempre dependente de empréstimos. Historiadores sustentam que, pressionado, Bernardes contava com a ajuda do grupo para alinhavar caminhos que levassem a uma perspectiva de pagamento dos débitos e, de quebra, reformular o arcaico sistema tributário nacional, viabilizar um aporte de mais 25 milhões de libras e, quem sabe, animar os britânicos a realizarem novos investimentos no Brasil.
Não falta quem defenda que a missão tenha vindo não por vontade do governo brasileiro, mas para atender interesses de banqueiros alarmados com a inadimplência do país, a má administração das finanças públicas e o fato de o Brasil pleitear mais recursos. Entre os credores estava o já citado grupo N. M. Rothschild & Sons, que teria arquitetado a missão Montagu ainda em 1919 com o objetivo de prospectar riquezas em território brasileiro.
Lord Edwin Montagu é um homem astuto. Fora secretário de estado para as Índias e secretário financeiro do tesouro da Grã-Bretanha. Está acompanhado, entre outros, do diretor do Banco da Inglaterra e presidente da Hong-Kong and Shangai Banking, Charles Addis, do conde de Londres, Hartley Withers, e do escocês Simon Joseph Fraser, o Lord Lovat, diretor da Sudan Plantations Syndicate.
Como pretendem os fazendeiros, esse grupo acabará interferindo diretamente no futuro das regiões norte e noroeste do Paraná e também no destino da ferrovia construída “no peito” por eles.
O controvertido Lord Lovat, um homem pragmático, alto, robusto, sempre demonstrando simpatia e disposição, com seus olhos mortiços e o vasto bigode, não é de brincar em serviço e, na condição de típico aventureiro inglês, topa qualquer parada. A serviço de seu país, coordenara a implantação de cultivos de algodão no Sudão, havia sido membro do exército britânico e tivera participação em diversas expedições pelo mundo – sem contar uma de suas predileções, os safáris na África. Como técnico em agricultura, sua presença na missão é indispensável.
Há quem garanta: o escocês tem a incumbência de analisar a possibilidade de a Sudan Plantations Syndicate fazer investimentos no Brasil. No entanto, se sabe que a política econômica inglesa já não demonstra simpatia à concessão de créditos ao exterior; almeja, isto sim, extrair o máximo possível de recursos em suas áreas de influência imperialista.
O Brasil nunca fez parte do império britânico. Mas é como se fizesse. Os visitantes, na confortável condição de representantes de uma nação historicamente credora, veem o país do alto de sua superioridade e arrogância.
No dia 15, Lord Lovat se desloca para São Paulo em um trem especial, com vários acompanhantes. É recebido na Estação da Luz por empolgados dirigentes da Associação Comercial, Bolsa de Mercadorias, Liga Agrícola e outros. A notícia repercute na imprensa, informando-se que o ilustre visitante teria curta permanência na capital e seguiria para visitar fazendas no interior do estado, incluindo uma passagem pelo Paraná. Os britânicos pareciam estar de olho no norte paranaense.
Preparando-se para a viagem, Lovat é informado de uma matéria estrategicamente plantada em um dos principais jornais paulistanos, O Estado de S. Paulo, sobre a construção da linha que está sendo executada pela Companhia Ferroviária Noroeste do Paraná. A existência dos trilhos é um “chamarisco” para quem pensa em prospectar oportunidades.
– This is very interesting[2] – balbucia o lord, que admite avistar-se com os proprietários da ferrovia e, em razão disso, um encontro é providenciado por Gastão de Mesquita Filho, o engenheiro responsável.
– Quando os ingleses se interessaram em comprar a estrada de ferro, eu fui a pessoa procurada para servir de intermediário, porque era amigo tanto de Lovat como do major Barbosa Ferraz – mencionou Mesquita em depoimento ao livro produzido pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná.
Alguns dias depois, em um requintado jantar na sede da Fazenda Água do Bugre, em Cambará, o major Tonico Barbosa, acompanhado de Willie Davids e Gastão de Mesquita Filho, recebe o tão aguardado lord. A conversa se estende, mas só na manhã seguinte, ao conhecer melhor a propriedade, o diretor da Sudan Plantations Syndicate apalpa a terra vermelha e se mostra bem impressionado com a sua fertilidade, a considerar pelo vigor dos cafezais.
Perspicaz, indaga e procura ouvir de Gastão de Mesquita Filho o que mais lhe interessa saber: para estimular o desenvolvimento, o governo do Paraná oferece enorme quantidade de terras esquecidas a quem chega primeiro. Faz qualquer negócio. Até essa época, a ocupação das terras paranaenses se resume principalmente à região de Curitiba e aos Campos Gerais, ao litoral e a uma pequena parte do norte pioneiro.
Mesquita demonstra ao escocês a viabilidade de escoamento dos produtos agrícolas à Inglaterra pelo porto de Santos, a partir da linha férrea existente, conectada ao quilômetro 400 da Estrada de Ferro Sorocabana, em Ourinhos.
Convencido, o lord observa a possibilidade de ampliar o traçado da estrada de ferro, em direção ao noroeste paranaense, passando por terras de preço módico, fácil aquisição e a certeza de valorização explosiva.
Lovat sabe muito bem: sem a linha, nada feito. Como se pode pensar em explorar o sertão se não houver um meio confiável de transporte? Apenas abrindo picadas em meio à selva seria impensável. Só mesmo uma estrada de ferro poderia trazer compradores e seus pertences.
O futuro de uma imensidão de terras, onde nascerá muitas cidades, começa a ser delineado. Lovat vai embora com os miolos queimando e, poucas semanas depois, no dia 25 de abril de 1924, organiza em Londres a fundação da Brazil Plantations Syndicate Limited, com capital de 200 mil libras esterlinas. Ainda nesse ano é instalada uma agência da empresa no Brasil.
No dia 26 de junho, sai o relatório da Missão Montagu, cujos integrantes, antes de retornarem a seu país, no início de março, se encontram com o presidente Arthur Bernardes para uma última cartada: apresentam proposta, imediatamente rechaçada pelo governante, para a compra do Banco do Brasil.
[2] “isto é muito interessante”
– Esses ingleses querem ser os donos do mundo – protesta o presidente.
O entusiasmo dos britânicos contrasta com a apatia das autoridades brasileiras. As vastas áreas de domínio estadual, localizadas a oeste do Rio Tibagi, estão ainda adormecidas em meio a um lento e ineficaz plano de colonização oficial. A morosidade governamental causara até mesmo uma frustração nas expectativas de ocupação das terras.
Ocorre que além das tensões e incertezas provocadas pela primeira Guerra Mundial, que interrompera o fluxo de imigrantes, a citada crise da erva-mate debilita as finanças do estado. De acordo com historiadores, havia falta de continuidade, os recursos financeiros eram limitados e observava-se uma visível inépcia oficial. Só a partir de 1922 é que o governo paranaense, enfim, começa a conceder glebas a empresas privadas de colonização, empregando recursos para construir alguns trechos de estradas.
A Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), que virá a ser nas próximas duas décadas uma das maiores corporações de capital privado instaladas em território brasileiro, é fundada no dia 24 de setembro de 1925, pouco tempo depois da constituição, em Londres, da Paraná Plantation Ltd, com capital de 750 mil libras esterlinas.
No dia 20 de outubro daquele ano, o The Times faz menção ao interesse britânico em investir no Brasil, citando a criação da Brazil Plantations e resumindo o tipo de atividade à qual se dedicaria a empresa: “cultivar sementes de algodão, erguer beneficiadoras, comprar lotes de terras virgens, desenvolvê-las e revendê-las a ‘small holders’”.
Inicialmente, são compradas propriedades no estado de São Paulo, nos municípios de Guatambu e Birigui, para o cultivo de algodão, atividade que, após alguns anos, será abandonada.
No Paraná, os vorazes britânicos partem com tudo para adquirir uma grande área. Primeiro, começam comprando títulos e direitos de posse para, em seguida, adquirir novamente do estado as mesmas terras. Para isso, contam com o trabalho de dois representantes muito ativos: Arthur Thomas, que em 1924 vem ao Brasil especialmente para organizar e dirigir a CTNP, e o advogado João Sampaio, o primeiro presidente da empresa. Ambos se reúnem, em Curitiba, com o presidente do estado do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, a quem propõem comprar “a preço de lei” as terras devolutas da região.
O presidente fica de queixo caído diante da proposta de aquisição de uma vasta extensão de terras, o que vai depender de uma autorização especial da Câmara Legislativa Estadual. Embora sem fixar preços, a venda de terras devolutas está regulada pela lei 1.642 de 5 de abril de 1916, cuja aplicação, sem critérios definidos, é de competência da Secretaria de Estado dos Negócios de Fazenda, Agricultura e Obras Públicas do Paraná.
A primeira escritura de venda pelo estado à CTNP é lavrada em 25 de outubro de 1925. Soma 847 mil hectares (350 mil alqueires ou 8.470 quilômetros quadrados), representando quase 65% do total finalmente adquirido em 24 de outubro de 1952 – quando a empresa já havia sido adquirida por brasileiros –, totalizando 13.165 quilômetros quadrados. Isto representa nada menos que 14% da área territorial do estado, 10% da superfície da Inglaterra ou 15% da Escócia. É mais da metade do País de Gales.
Planejando cada passo, os britânicos cuidam para que já na escritura das terras adquiridas pela CTNP fique explícita a transferência, para a empresa compradora, da construção de uma estrada de ferro que havia sido outorgada em 1922, pelo estado, à Cia. Marcondes, uma colonizadora paulista que passou a enfrentar dificuldades financeiras e não teria mais como honrar o compromisso.
O governo estadual recolhe aos cofres um total de 8.776 contos de réis, sendo mil à vista e o restante em doze anos, “à medida que forem vendidos”. No livro Londres Londrina (1985), José Joffily cita que o preço estipulado pelo governo paranaense foi de 8 mil réis o hectare, “quantia esta que representava a diária de um carpinteiro ou o custo de 5 quilos de feijão”. As terras serão, depois, negociadas aos colonos a 165 mil reis o hectare, ficando as despesas com demarcações, construção de estradas e ferrovia, por conta da empresa.
A lógica dessa negociação tão vantajosa para investidores, que se tornavam donos de imensas glebas de terras devolutas a valores simbólicos, era justificada pelos próprios governantes: o estado obtinha das empresas a aplicação de seu capital financeiro e de sua experiência na estruturação do espaço urbano e rural do território. “O Estado abre mão do lucro na venda da terra aos pequenos, médios e grandes compradores individuais, que é embolsado pelos empresários. Em compensação, recebe sem ônus para os cofres públicos, o espaço organizado e dotado de toda a infraestrutura que vai viabilizar a meta maior: o estágio desenvolvimentista”, conforme observa Elpídio Serra, professor do curso de Geografia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no ensaio A Colonização Empresarial e a Repartição da Terra Agrícola no Paraná Moderno, publicado no Boletim de Geografia de dezembro de 1993.
Um dos diretores da Paraná Plantations, Frederick Eckstein, vem ao norte do Paraná em 1927. Comunicando-se com os acionistas da empresa, que estão em Londres, ele anota, satisfeito:
– Tenho viajado de carro por distâncias consideráveis ao longo das estradas da Companhia e me sinto feliz de poder informar a vocês que, pelo que eu tenho visto pessoalmente e por relatos de outras fontes, a qualidade da terra até o momento examinada, justifica plenamente as expectativas criadas à época da sua aquisição.
O major Tonico Barbosa e seus sócios, donos da Companhia Ferroviária Noroeste do Paraná, esperam até 1928 para, enfim, passar o controle do empreendimento aos britânicos. No dia 20 de abril, pelo Decreto Estadual nº 450, são unificados e substituídos os contratos de termos de concessão de que eram titulares a companhia ferroviária e a CTNP, modificando-se também a razão social para Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná.
Essa companhia obtivera o privilégio de uso e gozo por noventa anos, da concessão compreendida de Ourinhos até Cambará e dali, transpondo o rio Tibagi, seguindo em direção ao espigão divisor entre os rios Paranapanema e Tibagi até o percurso de 280 quilômetros, em ponto conveniente ao prolongamento da mesma estrada até o rio Paraná, onde fosse mais próximo aos portos de São José e Guaíra.
De acordo com historiadores, antes de fechar negócio a Paraná Plantations teria partido com tudo para tentar adquirir a Estrada de Ferro Sorocabana, já bem estruturada no vizinho estado de São Paulo, o que agilizaria sobremaneira o projeto, bastando construir uma conexão até suas terras, ao norte. Como não logrou êxito, o único jeito foi implementar essa ligação pelo trecho mais longo, a leste, a partir de Ourinhos, na linha em construção da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná.
Segundo Renato Leão Rego, autor do livro As Cidades Plantadas – os britânicos e a construção da paisagem do norte do Paraná, a Paraná Plantations vai gerir seu negócio fundiário a partir do trabalho coordenado de suas duas subsidiárias: a Companhia de Terras Norte do Paraná e a Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná. “Justamente essa integração entre a empresa colonizadora e a construtora da ferrovia marcaria positivamente o empreendimento britânico no Norte do Paraná”. Tendo Ourinhos como ponto de partida, a estrada de ferro vai correr na direção sudoeste, em direção ao centro da área adquirida.