Apresentação

Um trem no fim do mundo

Entre 1928 e 1929 a Paraná Plantations começa a fazer barulho. O braço da empresa britânica no Brasil, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), arregimenta trabalhadores e profissionais especializados, muitos deles vindos do exterior. Vai construir uma ferrovia cortando o sertão do Paraná, ao mesmo tempo em que dará início a um projeto imobiliário e de colonização. Muitas cidades e lavouras de café irão florescer no espaço deixado pela mata.

Não há tempo a perder.

A CTNP adquiriu do estado, em 1925, a preço de banana, vastas glebas de terras devolutas na região norte – ampliadas depois para o noroeste – e, nessa propriedade de 13,2 mil quilômetros quadrados de território, conhecida como “Norte Britânico”, encaminha o seu empreendimento. É dona de 1,321 milhão de hectares, o que equivale a quase nove vezes o tamanho atual do município de São Paulo. Tudo vai ser retalhado e vendido em lotes urbanos e rurais a partir de Londrina, concebida em 1929 e cujo nome celebra a capital do império mais poderoso do mundo até então.

Mesmo ofuscados pela ascensão dos Estados Unidos no cenário internacional, os britânicos mantêm a supremacia territorial que cobre um quarto da superfície e da população do planeta. Decorridos três séculos, eles ainda se impõem nos oceanos com uma impressionante estrutura naval. O sol jamais se põe em seus domínios.

Empolgados com o norte do Paraná, sabem a riqueza que têm nas mãos. A oportunidade que se descortina é a vastidão verde, praticamente intocada, sob a qual repousa a terra vermelha, de comprovada fertilidade. É a garantia de ganhos vultosos, facilitados pelo combalido e subserviente governo de um país endividado, que depende de novos empréstimos justamente de seu principal parceiro e credor.

Um estratégico ramal ferroviário, comprado de um grupo de investidores locais em 1928, ainda com apenas 29 quilômetros de trilhos, vai ser o começo do que representará a espinha dorsal do projeto. Ligando a cidade paulista de Ourinhos à paranaense Cambará, a ferrovia se restringe ainda ao entorno da divisa entre os dois estados. Muito mais do que só escoar mercadorias, o trecho possibilita a movimentação de gente interessada – investidores e futuros moradores –, atraídos pela chance de chegarem antes em um lugar que está só começando.

Nesse início, se depender apenas dos caminhos poeirentos que cortam o sertão, e que se transformam em atoleiros quando de épocas chuvosas, a iniciativa não sairá do papel. Sem a estrada de ferro, não há como pensar em colonização. Tudo é primitivo. A linha abastece os povoados que vão surgindo e oferece a eles a perspectiva de progresso e de impulsionar a agricultura. Nas próximas décadas, a ferrovia avançará em direção ao noroeste para escoar dali o café e outros produtos agrícolas que serão colhidos em escala.

Percebe-se o perfil cosmopolita do contingente humano para executar a obra. Grande parte é formada por brasileiros oriundos do Nordeste – habitual fornecedor de mão de obra barata –, aos quais se mesclam os negros e também trabalhadores estrangeiros de diversas origens, muitos dos quais não se adaptaram à rotina nas fazendas de café. Os idiomas se misturam também entre os engenheiros, agrimensores, técnicos, carpinteiros e práticos: em meio a brasileiros e britânicos, há russos, alemães, portugueses, espanhóis, italianos…

Amedeo Boggio Merlo, engenheiro italiano, é nascido em Constantine, Argélia, então colônia francesa, em 10 de agosto de 1901, durante curto período em que os pais, Giuseppe e Isolina Boggio, naturais do Piemonte, lá estiveram. O pai era um construtor de casas e prédios. Naturalizado aos oito anos, Amedeo viveu toda a infância e juventude na Itália, na cidade de Vercelli, onde estudou e se formou em 1918 como geômetra, especializado na construção de pontes e ferrovias, profissão que no Brasil seria equivalente a tecnólogo em engenharia. Aos 22 anos, convidado pelo conterrâneo Pier Ferruccio Vecchi, que é perito em química e prático em teodolitos, ele vem a São Paulo com o propósito de fazer do Brasil apenas uma escala para a Austrália. Mas aqui, cede aos argumentos do amigo e decide permanecer no “país do futuro”.

Com seu conhecimento, não tem dificuldades em encontrar trabalho. Por recomendação de Vecchi, avista-se com o engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo, formado na Bélgica e autor de projetos importantes na cidade de São Paulo, entre os quais o Teatro Municipal. Ainda sem dominar a língua portuguesa, dialoga em francês e é aceito como apontador na construção de um edifício na Rua São Bento. Em seguida, executa o levantamento topográfico da região de Bertioga, litoral sul de São Paulo. Nos anos seguintes, Amedeo estará atuando em sua especialidade, prestando serviços a duas ferrovias construídas e operadas por britânicos. Primeiro, em 1926 e 1927, a São Paulo Railway Company Ltd., no trecho Alto da Serra entre Santos e Jundiaí. Depois, em 1927 e 1928, a Leopoldina Railway Company Ltd., no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, onde exerce a chefia de turma no prolongamento do ramal a Caratinga.

Estatura mediana, corpo magro, cabelos lisos e negros, Amedeo é um profissional preparado. Os óculos de aros redondos, uma de suas marcas, conferem um visual solene e empertigado. Um estudioso e voraz leitor, que aproveita o tempo vago em meio a livros e revistas, sempre com uma bituca de cigarro passeando de um canto a outro da boca. Circunspecto e meticuloso, não é de muito falar. Apenas socialmente, em companhia de Vecchi e de outros amigos próximos, se permite descontrair.

De volta à capital paulista, é contratado pela companhia inglesa MacDonald, Gibbs & Co Ltd. para integrar a equipe de engenheiros e técnicos que irá trabalhar, no inóspito norte paranaense, na construção do trecho de Cambará a Londrina da Estrada de Ferro São Paulo-Paraná. Por seis anos, entranhado na mata, Amedeo vai ser um dos protagonistas da obra: os quatro primeiros, de janeiro de 1929 a janeiro de 1932, no passo a passo do trecho Cambará-Jatahy; e os dois restantes, de outubro de 1932 a maio de 1934, na complementação da linha entre Jatahy e Londrina.

Ao ser admitido, assume a chefia de turma em tarefas de reconhecimento, exploração e locação. Mais tarde, vai atuar como técnico de seção e, por fim, assistente da chefia de construção.

Amedeo seria mais um profissional entre muitos a fazer parte da história da ferrovia, não fosse por um hábito que o diferenciou durante todo o tempo em que trabalhou para a empresa britânica: consciente de sua responsabilidade histórica naquele momento, registrou tudo o que pode em fotografias e filmes. As muitas imagens colhidas com o uso de equipamentos próprios, fazem dele um personagem singular.

Junto aos apetrechos necessários para as suas atribuições técnicas, Amedeo nunca deixava de carregar a filmadora Cine Kodak 16mm e as câmeras fotográficas Voigtlander e Leica 35mm, parafernália pouco comum para a época e o lugar, com a qual se esmerou em registros que compõem um vasto acervo.

Em seu isolamento no sertão, captura flagrantes do dia a dia da construção da linha em uma época de grandes dificuldades operacionais. No futuro, esse trabalho possibilitará ter uma ideia mais precisa, graças a qualidade do material produzido, da aventura que significou a obra; contemplar a fisionomia de muitos daqueles homens em plena jornada; os percalços diante de recursos técnicos tão incipientes; a edificação dos primeiros trechos e estações; o movimento das viagens inaugurais das composições puxadas pela Maria Fumaça.

Não lhe escapa a memorável passagem dos irmãos príncipes Edward e Albert à região, em 1931. Consta que o futuro rei Edward VIII, coroado em 1936 e que abdicou pouco depois para se casar com a plebeia norte-americana Wallis Simpson, era um dos principais acionistas da Paraná Plantations. Albert, o George VI, que o sucedeu no trono, inspirou o filme O Discurso do Rei.

O engenheiro coleciona papéis, objetos, revistas, recortes de jornais e outros tantos itens – muitos dos quais, a exemplo de suas câmeras, preservados cuidadosamente pela família.

Numa segunda etapa de sua vida, ao se deixar seduzir pelas oportunidades que vê surgirem em terras paranaenses, Amedeo se tornará empreendedor e precursor de várias cidades. Ele avista Londrina, a então pequenina Três Boccas, em 1930, quando o patrimônio não tem mais que duas dezenas de casas. Dois anos depois, se estabelece com uma serraria e uma olaria em Nova Dantzig (atual Cambé), época em que o povoado se resume a uns poucos casebres. Em 1940, muda-se para a pequena Arapongas, onde se consolida no ramo madeireiro e, quatro anos mais tarde, adquire 250 hectares de terras em Maringá, então uma remota vila de Apucarana. Ali, forma a Fazenda Kaetê, relíquia ainda hoje em poder da família, que a conserva em sua forma quase original. Por fim, no ano de 1957, o inquieto italiano, cujo sobrenome alguns brasileiros teimam em chamar de “Borges” ao invés de Boggio, transfere sua serraria para a nascente Umuarama.

É, em resumo, a trajetória de um sonhador que um acidente aéreo ocorrido próximo a Curitiba, no fim da manhã de 3 de novembro de 1967, interrompe prematuramente aos 66 anos.

Amedeo Boggio Merlo é reconhecido em importantes publicações sobre o período da colonização e desbravamento do norte do Paraná, tendo recebido homenagens públicas em vida e denominado ruas de Maringá e Umuarama após a sua morte.

A biografia desse intrépido pioneiro contribui para que, por meio da ampla e inédita produção de imagens de sua autoria, se conheça mais sobre a realidade da construção da importante estrada de ferro, às margens da qual muitas cidades brotaram. Uma história que, com certeza, como tantas outras, estaria condenada a perder-se na bruma do tempo e era pobre em imagens.

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Amedeo Boggio Merlo, elegante, de terno e gravata, óculos de aros redondos) – Crédito: Arquivo familiar

Agradecimento

  • Roberto Boggio, um dos filhos do engenheiro Amedeo Boggio Merlo, especialista na construção de pontes e ferrovias, é depositário do rico acervo deixado pelo pai, e quem teve a iniciativa de perpetuar essa história.