Em 1928, o inglês T. D. Hamilton é designado para ser o superintendente da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná. Ao chegar à sede da empresa em Ourinhos, Hamilton encontra uma equipe formada por Hermínio Socci, chefe de tráfego; Carlo Devienne, chefe de movimento; Oswaldo Pareto Torres, chefe de escritório; Humberto Formey, chefe das oficinas, e Benedito Monteiro, contador. O grupo utiliza também os préstimos do engenheiro William Reid, engenheiro-chefe de estrada de ferro. Logo, é providenciada a construção de uma residência para o superintendente, na atual Avenida Rodrigues Alves.
Também em 1928 é assinado um contrato com a empresa londrina MacDonald Gibbs & Co. Ltd. O objetivo é a construção da estrada de ferro de Cambará em diante, obra que inicia naquele ano. A CTNP tem urgência em fomentar o seu projeto de colonização.
No livro da Companhia Melhoramentos, Colonização e Desenvolvimento do Norte do Paran”, o engenheiro Gastão de Mesquita Filho, responsável pela construção do primeiro trecho ligando Ourinhos a Cambará, disse ter se decepcionado com a opção dos britânicos pela companhia inglesa:
– Para tristeza minha, perdi a obra a que eu me devotava com tanto entusiasmo, pois os ingleses decidiram prosseguir os trabalhos de construção com uma firma sediada em Londres.
Segundo Mesquita, nessa nova fase os sócios brasileiros na ferrovia, que eram minoritários, decidiram vender suas participações. A exceção foi o próprio engenheiro:
– Eu tinha um quase nada: 30 mil réis. E assim fiquei acionista junto com os ingleses, que demonstravam interesse na minha permanência na empresa para contarem com pelo menos um sócio brasileiro.
Mesquita é convidado a integrar o conselho fiscal da estrada de ferro, mas de 1928 a 1932, quando a segunda etapa das linhas é construída, ele permanece fora do norte do Paraná.
Observa-se, a partir daí uma grande mudança na forma de condução da obra, agora sob a cultura e a organização britânicas. A começar pelo idioma: o inglês é cada vez mais comum nos diálogos e comunicados entre os gestores, há a substituição gradativa do estafe por técnicos oriundos da Inglaterra e de outros países, sem esquecer a indefectível elegância na apresentação – com o uso indispensável de paletó e gravata para os profissionais do corpo técnico. Os funcionários administrativos, incluindo maquinistas e foguistas, devem seguir o asseio dos dirigentes: fazer a barba todos os dias, manter os cabelos aparados e os sapatos impecavelmente lustrados. Os empregados brasileiros têm que se acostumar a novas formas de tratamento e a tentar se ajustar a um novo modelo de trabalho.
Trilhos, pontes, aros, dormentes, parafusos, caminhões, máquinas, escavadeiras. Todo o material necessário para construir a ferrovia é enviado da Inglaterra. São muitas caixas pesadas que demandam enorme movimentação e uma logística especialmente preparada para descer a carga dos navios e acondicioná-la em vagões para seguir viagem até Ourinhos, a cerca de 450 quilômetros de Santos, por estrada de ferro.
O protagonismo do britânicos
Não é novidade a participação de britânicos na construção e na operação de ferrovias no Brasil. Eles são os principais protagonistas desde os primeiros capítulos da história da estrada de ferro no país.
Em 1828, quando o governo imperial promulga a primeira carta de lei incentivando as estradas em geral, é criada uma empresa anglo-brasileira para tentar construir uma ferrovia acessando o interior ao porto de Santos e reduzir os custos de exportação. O projeto não prospera. Em 1835, o regente Diogo Antônio Feijó, por meio da Lei Imperial nº 101, oferece incentivos à implantação ferroviária brasileira. Concede sua exploração por 40 anos, com privilégios, a quem construir linhas interligando o Rio de Janeiro às capitais de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia. O governo garante: para não haver concorrência, nenhuma outra ferrovia será construída numa faixa de 31 quilômetros de ambos os lados da linha autorizada. Mesmo assim, os investidores se mantêm cautelosos, pois não há a certeza de lucro substancial.
Preocupado com as dificuldades que enfrenta para impulsionar a construção de linhas férreas, o Império resolve entregar os pontos. Em 26 de julho de 1852 é assinado o Decreto Lei 641, que proporciona grandes vantagens econômicas aos investidores. Entre elas, um prazo de concessão de 90 anos, a garantia sobre o capital empregado, uma área de salvaguarda de 33 quilômetros, o direito de fazer desapropriações, explorar terras devolutas e isenção de impostos de importação de material ferroviário. No entanto, limita os dividendos em 8%, o que, segundo os possíveis interessados, prejudica a eficiência operacional. Com a revisão posterior da taxa de juros para 12%, finalmente os capitais internacionais se voltam para a construção de uma malha férrea no Brasil, oriundos especialmente da Inglaterra, país que vai ser o principal impulsor da construção de estradas de ferro em terras brasileiras.
Pouco antes do Decreto Lei 641, o banqueiro e empresário Irineu Evangelista de Souza, futuro Barão de Mauá, solicita privilégio para construir uma linha entre o Porto de Mauá, na Baía de Guanabara, à localidade de Raiz da Serra, na direção de Petrópolis, Província do Rio de Janeiro. Esta ferrovia, a primeira do Brasil, é inaugurada em 30 de abril de 1854, com apenas 14,5 quilômetros de extensão e bitola de 1,676 metro. A Estrada de Ferro Mauá teve apenas valor político e simbólico, por seu pioneirismo.
As bitolas foram convencionadas na linguagem ferroviária pelos nomes de bitola larga (1,676m), bitola estreita (1,00m) e bitola reduzida (0,60cm). Na rede ferroviária paranaense todas as estradas de ferro usariam a bitola estreita, exceto a Estrada de Ferro Mate-Laranjeiras, que optou pela bitola reduzida.
A The São Paulo Railway Company Ltd. (SPR), ligando Santos a Jundiaí – fruto de uma bandeira defendida em 1859 pelo Barão de Mauá junto ao governo imperial –, é confiada a especialistas britânicos, detentores de tecnologia e notória experiência na área. Iniciada em 1860, a estrada de ferro fica pronta em 1867 e é entregue aos próprios ingleses para ser explorada por 90 anos.
Entretanto, o rápido crescimento das exportações de café acaba saturando a via e leva a uma situação indesejável, uma vez que o monopólio britânico impõe altos custos aos setores que precisam fazer o escoamento do produto até o porto, contrariando interesses nacionais. Uma segunda linha, paralela àquela, é construída pela SRP entre 1895 e 1901, o que não impede o governo brasileiro de implementar, por meio da Estrada de Ferro Sorocabana, a construção de uma linha concorrente, acessando Santos a Mairinque. A SRP existe até 1947, quando, esgotado o contrato de concessão, é imediatamente nacionalizada.
Entre outras ferrovias construídas por ingleses no Brasil estão a Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco, de 1860 (até 1911 sob o controle de empresa britânica); a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco, de 1858, que ligou Recife a Garanhuns, e a Estrada de Ferro de Ilhéus, de 1913. Ainda no Nordeste, a Great Western construiu a Estrada de Ferro Central do Pernambuco, cujo primeiro trecho foi aberto em 1884, adquirindo no início do século XX todas as demais linhas que existiam no estado. No Espírito Santo, os ingleses compraram a Leopoldina Railway, aberta em 1872. E, no Sul, construíram a Porto Alegre-Novo Hamburgo, também de 1872, e a Brazilian Southern Railway, de 1887, ligando São Borja, Uruguaiana e Barra do Quaraí.
Farra com o dinheiro público
A garantia oficial de altos juros, privilégios de zonas e garantias de faixas são estendidas a quem construir estradas de ferro, abrindo espaço para uma verdadeira farra com o recurso público.
Mas não basta: a festança se torna ainda maior após o Decreto Lei 2.450 de 24 de setembro de 1873, que institui uma subvenção de 30 contos de réis por quilômetro de via construída. Diante de tanto dinheiro fácil, ferrovias são feitas com curvas em excesso e sem padronização na via permanente, não havendo preocupação sequer em diminuir a distância entre as cidades e estações.
No final de 1889, quando é proclamada a República, há no Brasil 9.583 quilômetros de ferrovias em tráfego, que servem a então capital e quatorze das vinte províncias. Entre 1890 e 1895, são abertos à circulação mais 3.383 quilômetros de estradas de ferro, pouco mais que nos últimos cinco anos do Império. O plano econômico de 1896 suspende todas as obras e decreta a moratória no pagamento das garantias aos investidores. Em 1906, a União se livra do pagamento dos juros ao comprar as ferrovias credoras.
Na década de 1910-1919 as ferrovias brasileiras atingem o seu maior percentual de acréscimo: 31,9%. A malha ferroviária do país chegou nesse período a uma extensão de 18.633 quilômetros, o equivalente a 50,33% do que iria ter em 1950. O ano de 1910 foi o que apresentou o maior número de linhas inauguradas: 2.225 quilômetros. Nas décadas seguintes, a expansão do sistema ferroviário nacional perderia fôlego. Entre 1920-1929 o acréscimo percentual ficaria em 12,03% e, de 1930-1940, em 5,31%.
Indispensável
No norte do Paraná, a presença dos britânicos é muito mais intensa que a preocupação em apenas construir uma estrada de ferro: eles desenvolvem um megaprojeto de colonização, incluindo a implantação de uma linha para atravessar a região e viabilizar o empreendimento. A via férrea é imprescindível em uma região completamente desprovida de acessos, onde os caminhos não passam de singelas aberturas no mato. O meio de se levar mercadorias aos lugares em desbravamento e, por outro lado, possibilitar que a produção local, principalmente cereais, café e madeira de lei, seja escoada.
Entre os técnicos, um italiano
Só com o tempo o Brasil deixará de depender tanto de produtos trazidos do estrangeiro para a construção de ferrovias. Mas essas obras ainda vão requerer, por tempo indefinido, profissionais experientes e, via de regra, originários de outros países, como o engenheiro italiano especializado em construção de pontes e ferrovias, Amedeo Boggio Merlo.
Cuidadoso e perfeccionista, Amedeo maneja um teodolito marca W&L. E. Gurley Troy, produzido em Nova York. Ele lidera uma equipe que faz o reconhecimento das áreas por onde vai passar a linha. Mapeia as ondulações do relevo, as formações rochosas, os rios e participa da organização do cronograma. Presente também nas etapas de exploração e locação, não perde de vista o menor detalhe.
– Se è da da fare, Che sai ben fatto[3] – costumava repetir.
A determinação da empresa é intensificar fortemente os trabalhos e nada menos que 96 quilômetros precisam estar concluídos no final de 1930. E, dois anos mais tarde, em 1932, os trilhos devem chegar a Jatahy, o final da primeira fase da programação. Por isso, o ritmo das obras é acelerado, tenso, envolvendo um grupo numeroso de técnicos, supervisores, prestadores de serviços em geral e um grande contingente de trabalhadores braçais, parte deles acompanhados de suas famílias, incluindo crianças.
Homens rústicos e rudes que enfrentam qualquer tipo de trabalho. É uma gente errante, habituada a viver de lugar em lugar, sempre pronta a levantar acampamento e sem nada aspirar a não ser a paga que lhe permitirá comer e vestir-se, ainda que modestamente. Eles dão pouco valor ao dinheiro, não cultivam sonhos e o máximo que podem pretender é, um dia, retornar para sua terra de origem, de onde vieram em situação de penúria. A quase totalidade é analfabeta e de tudo carente e resignada, mas muito se engana quem imagina tratar-se de um povo pouco devotado ao trabalho. Submissos, são homens de fibra que mais se parecem com máquinas, tamanha a disposição com que se apresentam e manejam as ferramentas. Incansáveis, tudo enfrentam de peito aberto, animados, não raro cantarolando, assoviando ou, para deixar menos maçante a rotina diária, travando intermináveis conversas com os companheiros. Suas mãos parecem lixas, de tão calejadas, os rostos magros e malcuidados são uma regra entre todo o contingente e muitos, com seus peitoris desnudos, expõem a ossatura dos frágeis e, ao mesmo tempo, a resistência admirável dos bravos. É assim que passam os seus dias, ora enfrentando jornadas mormacentas da selva, golpeando troncos de todos os tamanhos em ritmo quase frenético, ora, sob o sol escaldante, fragmentando rochas com picaretas. Nas horas vagas, surpreendem e conquistam a admiração dos sisudos britânicos com a alegria de suas músicas e cânticos, a destreza com que ponteiam violões em meio a inocentes algazarras e, por fim, o apego inquebrantável à religião.
Várias frentes se desenvolvem ao mesmo tempo. A construção exige uma série de tarefas complexas, porquanto a ausência de mapas precisos e confiáveis impõe a realização de um detalhado levantamento geográfico e topográfico da área antes de projetar a rota da estrada. Concluída essa primeira fase, começa a empreitada bruta de devastar o terreno e derrubar a vegetação, utilizando apenas a força braçal, com machados e foices. São muitos homens enfrentando o desgastante desafio diário de colocar a floresta abaixo, enquanto a turma que vem atrás vai remover as toras aproveitáveis e amontoá-las nas margens. A equipe seguinte cuidará da limpeza, retirando restos de troncos e queimando a vegetação remanescente. A preparação do terreno inclui a drenagem de pântanos, movimentos de terra, escavações, transporte, nivelamento do leito, terraplanagem, aterros e construção de taludes.
Para o manejo de terras usam-se muares e carroças e, quase sempre, implanta-se ao lado da principal uma linha férrea auxiliar e provisória, que facilita o transporte. As turmas de trabalhadores são formadas por sondadores, roçadores, cavouqueiros ou escavadores, condutores, niveladores e outros.
A existência de rochas constitui obstáculo só superado mediante detonações. Em seguida, é feita a retirada das pedras para posterior aproveitamento na base das linhas. Equipamentos movidos a vapor executam o retalhamento das mesmas, padronizando o tamanho.
Só se pode contar na selva, em condições tão íngremes, com a operosidade humana e a tração animal. Filmes e fotografias, inclusive a coletânea produzida por Amedeo Boggio Merlo, mostram grande quantidade de carroções, tracionadas por bois, no transporte de terra, pedras, paus e todo o tipo de materiais, ferramentas e até mesmo de trabalhadores. Na verdade, há pequenos caminhões, mas seus motores ainda são de baixa potência e tais veículos não têm o mesmo desempenho dos carroções, que se movimentam com mais facilidade e chegam a qualquer lugar nas frentes de trabalho.
Com o piso compactado, é o momento de assentar a consistente base de pedras que vai sustentar os dormentes, o que também exige um esforço extraordinário de homens e animais. São necessários 200 homens para assentar um quilômetro.
O próximo passo, depois de organizados os dormentes – que devem ficar a uma distância milimetricamente calculada um do outro –, é a colocação e o aparafusamento dos trilhos. Tudo segue rápido e com perfeição. Os trabalhadores que se ocupam do assentamento da via permanente, manejam de 110 a 140 toneladas por dia, incluindo trilhos e dormentes. Os trilhos e acessórios são carregados dos depósitos no começo da linha até o final por vagões. O trabalho de descarregar os vagões e carregar os trilhos até o local de assentamento é manual e exige homens com grande destreza física para evitar acidentes.
A rotina no acampamento consiste em levantar às 5 horas, organizar os pertences, tomar café e seguir para as frentes de trabalho, onde há a assistência de equipes de apoio. O retorno é às 17 horas, mas o expediente, quase sempre, vai além desse horário.
Com larga experiência em obras de tal porte, os britânicos fazem do acampamento uma autêntica cidade itinerante, servida de toda a estrutura e logística para que tudo saia a contento. Há tendas e barracas para vários tipos de alojamentos, espaço de refeições equipado com ampla cozinha, depósitos diversos para acondicionar desde alimentos, bebidas e materiais empregados na construção, a ferramentas, medicamentos e combustível. Eles mantêm um bem servido ambulatório, área de comunicação, serviço postal, uma espécie de seção pessoal e centro de comando, onde ficam os dirigentes e engenheiros. Esses acampamentos vão ganhando nomes diferentes à medida que são instalados, justificando-se por acidentes geográficos, rios ou outros motivos. Amedeo registrou vários desses nomes: Guaxupé, Caixão, Limeira…
A topografia podia tornar a construção muito difícil, especialmente considerando os escassos recursos tecnológicos da época. Terrenos acidentados, a derrubada da densa vegetação e as chuvas durante o verão, além de deslizamentos, trazem mosquitos e enfermidades, fazendo da construção e da manutenção um serviço pesado, perigoso e caro.
Em 1930, o presidente da Paraná Plantations, Arthur Asquith, visita a obra e retorna a Londres, empolgado:
– Fiquei satisfeito com a construção da ferrovia, o desenvolvimento da colonização ao longo dela e com o tipo de campo que a linha está abrindo.
[3] “se é para fazer que seja bem feito”
Não soubemos aproveitar
Nem sempre os gananciosos investidores estrangeiros conseguiram amealhar os vultosos lucros que esperavam alcançar com facilidade no Brasil. Os britânicos, sem dúvida, pelas razões já expostas, muitos dividendos obtiveram ao longo dos 18 anos em que permanecem no norte do Paraná, mas com a Segunda Guerra Mundial, em que são protagonistas, suas expectativas acabam em grande parte frustradas. Embora essenciais para um país que tanto precisa de estradas de ferro para integrar seu vasto território e promover o desenvolvimento, elas deixariam em pouco tempo de ser prioridade, em monumental equívoco dos governantes do país, que as preteriram em favor das rodovias. Se os estrangeiros não faturaram como queriam, os brasileiros, por sua vez, não souberam aproveitá-las.
Em ambiente hostil
A vida é áspera para quem se habilita a um trabalho assim, em um lugar tão ingrato e hostil. O ambiente ao redor é a mata primitiva e o acampamento agrupa barracas de lonas apoiadas em bambus, sob a qual há camas de campanha protegidas por mosquiteiros, pequenas mesas e armários. Os abrigos são erguidos, um ao lado do outro, em planicie de chão abaulado, para prevenir alagamentos.
As chefias impõem regras, exigências e regulamentos aos comandados, sendo precisos e rigorosos em relação a horários e toda a sorte de cuidados.Sob as ordens dos britânicos – à exceção, obviamente, dos trabalhadores mais rústicos – eles devem manter asseio e apresentar-se com roupas limpas, sapatos engraxados e barbas feitas todos os dias. Não é difícil observar representantes da direção trabalhando elegantemente na selva.
Certa ocasião, ainda quando atuava na The São Paulo Raiway Ltd., Amedeo e sua equipe receberam, na Serra de Santos, a visita de surpresa do chefe responsável pelo trecho Santos-Jundiaí, para uma inspeção. Como não havia se barbeado naquele dia, o engenheiro foi surpreendido ao receber pelo malote, posteriormente, algo que lhe pareceu uma advertência: um jogo contendo um aparelho de barba, pincel e creme. A mesma apresentação era exigida, segundo ele, dos maquinistas das locomotivas e seus auxiliares.
Equipes são trazidas para cozinhar, lavar e engomar roupas, guardar e consertar ferramentas, fazer o controle de documentos, fichários e da escrituração diária. Há profissionais preparados para primeiros socorros e o atendimento de emergências, gente para o serviço de comunicação, enfim. No refeitório, a alimentação é farta, acrescida de assados e refogados que resultam de caças – aves, catetos, veados, pacas – acompanhada de água e suco de frutas. À noite, o corpo técnico tem direito, também, a duas doses de uisque escocês, bebida que ajuda a espantar o frio e quebrar a monotonia. Regularmente, caixotes repletos de enlatados e garrafas de malte e champanhe, entre outros tipos de bebidas, chegam ao local da operação. Come-se bem e bebe-se ao melhor estilo britânico, brindando o progresso diário.
A rotina que vai acentuando o sentimento de solidão de cada um, naquele mundo distante, é enfrentada por alguns com a leitura de livros e publicações diversas, bem como jogos de azar, mesmo para os quais há regras, além de conversas sobre os acontecimentos do dia a dia, quase sempre sem grandes novidades.
Leitor voraz, Amedeo procura informar-se acerca das notícias do mundo por meio de uma rádio galena que funciona com cristal no dial. É dessa maneira que os acampados são informados em 1929, da quebra da bolsa de Nova York, acontecimento que mudaria os rumos da economia mundial, criando muitas incertezas. Símbolo maior da pujança econômica dos Estados Unidos, o mercado de ações, que se tornara verdadeira mania nacional, vê a rica e poderosa bolsa queimar seus papéis, arrastando com ela as economias, esperanças e sonhos de milhares de investidores, levados à bancarrota.
No ano seguinte, o rádio volta a ser o centro das atenções diárias em função da crise política que se instalara no Brasil, trazendo preocupação aos investidores estrangeiros. Um golpe de estado saca do poder Washington Luiz, rompendo a oligarquia “café com leite” patrocinada por Minas Gerais e São Paulo, e levando Getúlio Vargas, então governador gaúcho, à presidência da República. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt dá início ao New Deal, o plano de recuperação econômica para superar a Grande Depressão.
Cobras muçuranas, predadoras de serpentes peçonhentas, são mascotes nos acampamentos, mantidas próximas às barracas, como Amedeo disse ter visto no período em que prestou serviços à SPR em São Paulo. Segundo ele, podia acontecer de algum desavisado recém-chegado levar um susto e abater essas cobras, pensando ter prestado um serviço.
Desgastes provocados por longas temporadas de convivência tão próxima, em especial entre os trabalhadores mais humildes, terminam em desavenças. Há, ali, gente de todo o mundo, que traz hábitos, culturas e costumes diferentes.
A dureza da vida na selva é marcada não apenas por eventuais brigas. Equipes estão preparadas para socorrer e assistir os trabalhadores vitimados por picadas de animais peçonhentos e insetos, os que adoecem, sofrem de males súbitos e os que se acidentam com o manuseio de ferramentas, espinhos, quedas de árvores etc.
O impaludismo é uma das enfermidades mais comuns. Depois que os homens contraem a malária, a produtividade diminui a um terço e eles não se curam totalmente. São inúmeros os focos de mosquitos, principalmente junto aos rios, sendo que os trabalhadores resistem ao tratamento com quinina, já que a droga pode provocar efeitos colaterais como surdez e cegueira.
Apesar de haver um grande número de publicações a respeito do trabalho nas ferrovias, não existem muitos estudos sobre as turmas que se ocuparam da construção das estradas de ferro, segundo aponta a publicação “Caminhos do Trem”, da Ediouro Segmento-Duetto Editorial Ltda. A principal razão para essa lacuna reside, provavelmente, na grande dificuldade em rastrear seus integrantes nas fontes. Como a maior parte deles não era empregada diretamente pelas companhias, não constava de seus relatórios e documentos.
Como já foi dito, a realização das obras das ferrovias implica em isolamento – viver longe das cidades, separados das famílias e dos amigos, na maioria dos casos em regiões distantes, nas novas fronteiras. Confinado no mato, o numeroso grupo está sujeito ao tédio e à monotonia de longos períodos chuvosos, quando os serviços não avançam, e também a invernos rigorosos, que impõem sacrifícios. Por isso, para “colocar a vida em dia”, engenheiros e técnicos são autorizados a desfrutar de uma licença de quinze dias a cada três meses, seguindo quase sempre para São Paulo.
Personagens memoráveis
Todos os dias, por não conseguirem se adaptar ao trabalho naquelas condições, trabalhadores vão embora, ao mesmo tempo em que chegam outros tantos.
Entre os que participam da construção da ferrovia está o alemão Kurt Jakowatz. No dia 1º de março de 1929, ele deixa a fazenda Bela Vista em Ipauçu (SP), onde trabalhava em lavoura de café. Acompanhado do colono Gustavo Wolff, segue para Ourinhos com o propósito de buscar serviço na companhia britânica. Ali chegando, embarca prevenido em um caminhão Ford 1929 para viajar pelo sertão. Muitos anos depois, na década de 2000, pouco antes de morrer, ele escreve um relato:
“Conforme informações do Sr. Deringer [possível contratante], as terras estavam a uma hora de viagem adiante de Cambará, mas viajamos um dia e uma noite. Pernoitamos na Serra Morena num pequeno rancho feito com lascas de coqueiro”.
Era difícil transpor a Serra Morena quando chovia. Ainda na década de 1930, o temível acidente geográfico passou a identificar o patrimônio no quilômetro 165 da Estrada de Ferro São Paulo – Paraná. Mas o nome Serra Morena desapareceria do mapa, substituído por Cruzeiro do Norte, distrito de Uraí.
Jakowatz anotou que, durante a pernoite na Serra Morena, os viajantes, apreensivos, perceberam a presença de índios. O medo só foi embora quando um português que tomava conta do rancho tranquilizou o pessoal, afirmando que os índios por eles observados nas imediações eram amistosos. “Dormimos todos juntos, mais apertados que sardinha em lata, mas sem perigo nenhum”[4].
A respeito da presença de índios no entorno da obra ferroviária, Amedeo contou aos filhos que eram comuns os contatos com nativos, entre os quais caboclos “alongados”. Segundo ele, uma das tribos, inclusive, jamais havia tido aproximação com o homem branco.
O alemão Jakowatz é lembrado como um dos precursores do desbravamento do norte do Paraná. Ele integrou a memorável expedição que em 21 de agosto de 1929 chega ao lugar denominado Gleba Três Boccas, pertencente a Jatahy, que daria espaço à futura cidade de Londrina. A comitiva era composta, entre outros, pelo paulista descendente de ingleses, George Graig Smith. Com ela, os britânicos tomam posse de suas terras. Mais tarde, Jakowatz seria auxiliar do engenheiro Carlos Rotmann. Com este, participa em 1934 da abertura de uma picada em cujo final é instalado o marco inicial da construção de uma capela. Trata-se do embrião de Apucarana.
Honório Martins dos Santos, encarregado de obra, foi também um prestativo profissional que se destacou por sua dedicação ao empreendimento. Ele guardou alguns documentos dessa época, que são preservados por seus familiares, moradores em Jacarezinho e Maringá.
O engenheiro Gastão de Mesquita Filho, responsável pelo projeto e a execução do primeiro trecho da ferrovia entre Ourinhos e Cambará, apresentou aos britânicos um homem que faria história e carreira na companhia: o suíço Alfredo Werner Nyffeler.
Nyffeler se torna amigo de Amedeo, com quem, em seus momentos de folga, participa de pescarias. São muitas as imagens produzidas pelo técnico italiano em que o outro aparece. Em uma delas, no filme que denominou Caçando e pescando no Rio Tibagi, ambos estão a bordo de uma canoa que navega em águas tranquilas, margeadas pela densa vegetação. Nyffeler, que mais tarde assumirá o escritório da Companhia de Terras Norte do Paraná em Maringá, coordenando a segunda grande etapa de colonização realizada pela empresa, vai possibilitar ao amigo realizar o sonho de tornar-se fazendeiro de café.
[4] Relatos de Kurt Jakowatz, escritos de próprio punho, recolhidos em 2006 junto ao próprio pioneiro.
Década importante
Os anos 1930 são lembrados como um caldeirão fervente, do qual verteu um caldo produzido com a mescla de totalitarismo, recessão, guerras, contestações e importantes mudanças comportamentais.
Começou em meio a Grande Depressão e terminou com a deflagração da Segunda Guerra. Tamanha mistura impediu que houvesse uma característica para definir o período tão impregnado de tensões e sobressaltado por incertezas.
A quebra da Bolsa de Nova York seria muito mais que uma devastadora crise econômica no sistema industrial-capitalista, que mergulhou os Estados Unidos e dezenas de outros países na recessão, causando desemprego, entre outras mazelas. Fez surgir uma onda de pessimismo e desespero que tomou conta do mundo, favoreceu a ascensão de movimentos nacionalistas e populistas, abriu caminho para vanguardas artísticas e ensejou perturbações políticas de toda ordem ao redor da Terra.
No coração da Europa, a cinzenta Londres, que na década de 1920 havia perdido para Nova York a hegemonia entre as maiores metrópoles do mundo e, mesmo assim, chegaria a 1939 – no espocar da Segunda Guerra – com 8,6 milhões de habitantes, exibia a opulência e o requinte de capital de um vasto império. Fervilhante, com suas avenidas coalhadas de veículos, a cidade já era entrecortada desde meados do século anterior, no subsolo, por um intrincado sistema ferroviário.
É em meio a esse cenário internacional que o Brasil também começa a viver períodos conturbados. Depois de 1930, com a ascensão de Vargas ao poder por meio de um governo provisório, São Paulo, insatisfeita com a situação, mobilizará dois anos mais tarde o seu maior movimento cívico, fazendo irromper a Revolução Constitucionalista, em que exige eleições presidenciais e uma nova carta régia para a nação.
Cosmopolita, abrigando imigrantes de inúmeras nacionalidades, a capital paulista não apenas é agitada por conflitos nessa época, como sua arquitetura experimenta novos estilos, cores e formas que fazem surgir uma linguagem moderna e com personalidade. Tendo alcançado seu primeiro milhão de habitantes em 1928, a cidade se expande e inicia, com os arranha-céus, um vigoroso processo de verticalização. Nas salas de cinema, multidões se comovem ao assistirem “E o Tempo Levou”, mas se encantam também com as peripécias de Tarzan, o gracioso desempenho de Chaplin e a atuação, entre muitos outros, de Greta Garbo, Marlene Dietrich, Bette Davis e Mickey Rooney. O entretenimento mais popular ainda é o rádio, com a prolífera década de 1930 reverberando muitas canções que se eternizam, entre elas “Mamãe eu quero”, “O Teu Cabelo Não Nega”, “Tico Tico no Fubá” e “Aquarela do Brasil”. A vida nacional é embalada pelas vozes de Carmem Miranda, Noel Rosa, Lamartine Babo, Vicente Celestino, Orlando Silva, Francisco Alves… A população frequenta mais os espaços públicos, valoriza a prática de esportes e os óculos escuros se tornam a última moda.
Preocupações e avanços
A crise internacional, combinada com a tumultuada situação brasileira, principalmente no estado de São Paulo, assusta os investidores britânicos e a construção da ferrovia é interrompida temporariamente no Paraná. Mas já em 1930 a obra registra conquistas importantes. Para se ter ideia, os primeiros 29 quilômetros ligando Cambará ao então distrito de Ingá (atual Andirá), ficam prontos no dia 15 de abril.
Em Ingá, uma estação é construída em terreno doado pelo fazendeiro Bráulio Barbosa Ferraz, um dos filhos do major Tonico Barbosa. Entusiasmado, ele sabe que o progresso da região vai ser impulsionado pela presença da ferrovia e aproveita para dividir parte de sua propriedade em pequenos lotes, para vender a interessados.
Outros 24 quilômetros, entre Ingá e o então distrito de Invernada, que pertencia a Jacarezinho, são concluídos no dia 1º de julho. A estação fica a três quilômetros do patrimônio, o qual, pouco tempo depois, recebe o nome Bandeirantes.
No dia 1º de dezembro estão finalizados mais 43 quilômetros de estrada de ferro, entre Bandeirantes e Cornélio Procópio, passando por Santa Mariana.
A empresa constrói nada menos que 96 quilômetros em um ano, evoluindo a uma média de 380 metros de linha por dia.
O trem vai chegando
Os pioneiros que viajam pela Estrada de Ferro Sorocabana em direção ao Paraná, têm que fazer baldeação no ponto final em Ourinhos, um entroncamento ferroviário importante que, já em 1908, conta com um posto da estrada de ferro. Os passageiros descem e embarcam nos vagões da outra companhia, a Estrada de Ferro São Paulo-Paraná.
Alimentadas a lenha, combustível abundante na região, as locomotivas trazidas da Índia, de segunda mão, são tracionadas a vapor. Além da Maria Fumaça e seu tender, a composição se resume, na maioria das vezes, a um vagão de bagagem, três a quatro carros de passageiros e um outro chamado de “gaiola”, para o transporte de animais.
Em seu ritmo tranquilo, o trem penetra aquele mundo verde a uma velocidade nunca superior a 40 quilômetros por hora, sem contar que as paradas são muitas. Há uma estação, pelo menos, a cada 15 quilômetros de linha, quase todas elas servidas de pilhas de lenha e um reservatório de água. Enquanto, nas seguidas paradas, os empregados da companhia abastecem o tender com lenha e fazem a reposição de água na caldeira da máquina, os passageiros aproveitam para movimentar-se.
O trem é mais vantajoso aos passageiros do que viajar de jardineira. Eles se livram do suplício da poeira vermelha, fina e penetrante, da estrada de terra, e do risco de atolar no barro, situação em que, inevitavelmente, seriam “convidados” a descer e a ajudar a empurrar o veículo. Mas, nos vagões, as pessoas estão sujeitas à fumaça e às fagulhas lançadas pela máquina. Em razão disso, a recomendação é que viajem com roupas velhas, pois poderá ocorrer de surgirem buracos nas mesmas. Por causa das fagulhas, a empresa se obriga a manter equipes de prontidão em pontos estratégicos ao longo da linha, encarregadas de combater focos de incêndio no mato, que se alastram como rastilhos de pólvora.
Sobre isso, em sua viagem ao Paraná, o escritor Júlio Nogueira, autor de Do Rio ao Iguaçu e ao Guayra, editado na década de 1940, escreveu: “Pelas margens da estrada, notam-se, de onde em onde, vestígios de queimadas na orla da floresta. São incêndios ocasionados pelas fagulhas despendidas pelas locomotivas e que resultam não apenas prejuízos. As máquinas queimam lenhas e suas chaminés não são protegidas por telas metálicas, de modo que centelhas fiquem enclausuradas. À noite, entretanto, o espetáculo é digno de ver-se. As partículas luminosas envolvem o dorso do comboio, num ambiente de fogo, e o trem parece um desses monstros imaginários pela fantasia infantil das literaturas antigas, criadoras dos dragões e das florestas encantadas”.
As intermináveis paradas durante a viagem geram impaciência e os vagões ficam infestados de insetos, entre os quais besouros e mariposas, cuja quantidade nos lustres chega a escurecê-los.
No livro Pinhalão, Memórias de Adib Calixo, publicado em 1944, o autor, contumaz viajante de trem, observou: “À noite, tudo mudava, a escuridão cobria tudo, somente se podia divisar os trilhos à frente da locomotiva, mal iluminada pelo enorme farol frontal da máquina. A silhueta da composição não passava de dezenas de janelas iluminadas deixando visualizar com dificuldade todos os carros. De quando em quando, cortinas de fagulhas eram expelidas pela chaminé da locomotiva, que rasgava a noite”.
O serviço prestado é razoável, com uma organização típica dos ingleses, sempre atentos aos pormenores. O trem oferece razoável conforto, espaço e, durante as viagens, vendem-se doces, salgados e bebidas. Os maquinistas se esmeram em parar e arrancar com o máximo de suavidade e, a exemplo dos demais funcionários, apresentam-se bem vestidos. A pontualidade é uma regra básica.
Lovat e a comitiva real
Tudo caminha bem e, ainda em 1930, retorna ao Paraná, depois de cinco anos, o legendário precursor da CNTP, o escocês Lord Lovat. Seu objetivo é fazer uma verificação pessoal do andamento do projeto de colonização e preparar a visita oficial ao Brasil, programada para o ano seguinte, de ninguém menos que Edward, o príncipe de Gales, herdeiro do trono da Inglaterra, e de seu irmão, o príncipe Albert, Duque de York.
Os visitantes precisam ter uma boa impressão das obras e, para isso, nada pode ser esquecido. Desde a pintura nova nas construções ao longo da linha, ao cuidado com o traje de cada funcionário, a roçada do mato nas margens, as arrumações onde sejam necessárias, enfim. Com grande antecedência se decide que a comitiva real irá almoçar em Cambará, na fazenda do major Tonico Barbosa. Em alguns pontos do trajeto haverá grupos de pessoas saudando a comitiva com pequenas bandeiras do Brasil e da Inglaterra. Por fim, uma ousadia: fica resolvido que a estação de Cornélio Procópio, um povoado ainda nascente, vai ganhar, em local visível, uma enorme placa com a palavra “Welcome” (bem-vindo, em português) iluminada por lâmpadas elétricas. Numa região onde os moradores só podiam contar com lampiões e lamparinas, a placa despertaria a atenção de todos.
Lovat tem uma certeza: a presença do futuro rei no norte do Paraná vai tornar a região mais conhecida não apenas entre os brasileiros, mas de boa parte do mundo. A repercussão da visita ajudaria, na visão dele, a fortalecer o empreendimento.
Desde o início a empresa britânica faz intensa divulgação no Brasil e no exterior[5], num discurso que reforça as maravilhas da região, do progresso e da riqueza existente. Além da propaganda, a CTNP coloca principalmente em vários pontos de São Paulo e Minas Gerais, como também no Paraná, agentes/vendedores de terras que, de posse de material publicitário e pré-contratos, procuram atrair interessados.
No dia 25 de março de 1931, os príncipes desembarcam no Rio de Janeiro, onde são recebidos com pompa pelo governo provisório de Getúlio Vargas.
Durante três dias em que permanecem na então capital da República, hospedados no Palácio Guanabara, eles cumprem movimentada agenda que inclui eventos protocolares, jantares e recepções. Quando ambos se dirigem em trem especial ao norte do Paraná, após uma estadia em São Paulo, a visita é de caráter semiparticular e, por isso, sem o acompanhamento oficial de representantes do governo brasileiro.
Assim relatou o Palácio do Itamaraty a respeito da passagem da comitiva real: “De São Paulo, os Príncipes seguiram para o Norte do Estado do Paraná em visita às terras da Companhia ‘Paraná Plantations’. Essa parte do programa foi arranjada de acordo com o desejo de sua Alteza Real de conhecer as propriedades da referida Companhia inglesa”.
No final da manhã do dia 31, em meio a ansiedade e muita expectativa na pequena estação de Leoflora, em Cambará, um grupo seleto de convidados se agita ao saber que a composição da Sorocabana, trazendo a comitiva real, trazendo os visitantes, já passava por Ourinhos.
O trem cruza a divisa e chega ao Paraná. Logo que atravessa o Paranapanema, diminui a velocidade e avança contidamente até descansar em Leoflora, sob a saudação efusiva de homens trajando terno completo e senhoras de xales e chapéus. Acompanhado de Lovat, o príncipe de Gales, com roupa cáqui, bermudas, meias brancas até os joelhos e chapéu redondo, estilo safári, é um rapaz magro, de olhos muito azuis. Albert, mais encorpado, veste camisa esporte. De lá, o grupo segue para almoçar na Fazenda Água do Bugre, cuja beleza é comentada pelos visitantes. O cardápio impresso em francês concilia a alta culinária internacional e produtos da terra. A comida, servida com talheres de prata, é acompanhada de vinho, em finos cristais. Segundo alguns historiadores, os membros da família real se impressionaram, mesmo, foi com o tamanho chamativo de abóboras e melancias que viram sobre uma das mesas.
Terminado o banquete, os príncipes e seus acompanhantes retornam ao trem e rumam em direção a Cornélio Procópio, distante pouco mais de 60 quilômetros. O povoado se resume a uma pequena estação, a um pátio de manobras, depósitos, alojamentos e alguns poucos ranchos. Para frustração geral, o enorme arco de madeira com a saudação “Welcome”, que deveria estar iluminado por lâmpadas incandescentes, não acende quando a trupe se aproxima.
Em seu livro “Das Origens da Emancipação do Município”, Átila Silveira Brasil escreveu: “No casario de madeira, construído pelos ingleses no aclive frontal da Estação Cornélio Procópio, havia grande alvoroço. Lá pelas 11 horas, o trem especial entrou apitando, lento, no pátio da estação. O agente comandou a parada, enquanto a comitiva de recepção, formada por ingleses, técnicos e poucos empregados da Companhia, preparava-se para receber o príncipe herdeiro. Suspense na chegada: o trem permaneceu fechado durante alguns minutos. Então a porta se abriu e começaram a descer os visitantes. Primeiro desceu Lord Lovat, depois Arthur Thomas e, em seguida, o Príncipe de Gales”.
Feitas as apresentações, os visitantes se encaminham para as casas dos ingleses, onde fica o escritório da CTNP. Entram e vão tratar de negócios, pois Edward é um dos acionistas da Paraná Plantations. Depois de duas horas, retornam à estação e decidem ir caminhando até à ponta da linha, distante alguns quilômetros. Quando lá chegam, o príncipe, com preparo de atleta, decide voltar correndo. Silveira Brasil mencionou: “Não adiantaram as afirmações da longa distância. O Príncipe correu e chegou normalmente, dando provas de sua vitalidade. Carros foram improvisados para trazer os suarentos ingleses, pois eles vinham caminhando com dificuldades entre os dormentes e as pedras do leito da ferrovia”.
Como chegou muito antes e precisava esperar pelos que o acompanhavam, o príncipe herdeiro sentou-se num banco da plataforma e, sem cerimônia, começou a arranhar o português com o agente Antônio Marques Júnior. Segundo comentou depois o surpreso agente, Edward quis saber sobre a qualidade das terras, as madeiras das matas, as principais lavouras e até a respeito de leis.
Recomposta, a comitiva desloca-se de carro até Jatahy, onde finaliza detalhes para o loteamento de Londrina. Conforme testemunha, o príncipe foi recebido pelo administrador dos ingleses, Elias Dequêch, permanecendo ali algumas horas e só retornando tarde da noite. Depois de jantar, quase à meia-noite, eles se despedem e o trem especial é colocado em marcha.
A propósito da visita dos príncipes, o jornal londrino “The Scotsman” reportou que a estrada de ferro “estava sendo construída por engenheiros britânicos em meio a muitas dificuldades, transpondo rios ligeiros, rompendo rochas e cortando seu caminho através da mata impenetrável que, limpa, oferecia terra magnífica para o café e outras culturas”.
Detalhe interessante dessa visita dos príncipes é que Albert, o irmão mais novo de Edward, e quem de fato assumiria o trono, foi relegado a um plano secundário durante toda a programação. Enquanto Edward, por ser o herdeiro, permanecia o tempo todo no centro das atenções, Albert se mantinha discreto. Ninguém poderia imaginar que apenas seis anos depois, em 1937, Edward causaria uma grande comoção ao abdicar, com poucos meses de reinado, para se casar com uma plebeia. E que o introvertido Albert, tímido e gago, seria entronizado com o nome de George VI.
[5] Pesquisa realizada por Rosymara Amélia Eduardo da Costa (PIBIC/Fundação Araucária), sob a orientação de Roberto Bondarik.
Trem que trouxe a comitiva real – Crédito – Arquivo familiar
Fim da linha. O trem chega a Jatahy em 1932
Chegando os trilhos à Villa Jatahy, no quilômetro 184, a estação é inaugurada festivamente em 5 de maio de 1932, finalizando o contrato com a MacDonald Gibbs & Co. Ltd.
O nome do lugar está escrito em relevo nas laterais do prédio e moradores mais antigos contam que todo dia era um acontecimento a chegada do trem procedente de Ourinhos, trazendo passageiros vindos de São Paulo, de outras partes do Brasil e às vezes até do estrangeiro. A locomotiva apita na curva e bate o sino antes de parar na estação. Em meio a muita curiosidade dos que presenciam a cena, os viajantes desembarcam dos vários vagões naquele ponto final da linha, enquanto moleques correm para ajudá-los a carregar as malas, em troca de pequenas gorjetas.
A atual Jataizinho tem história: às vésperas de começar a colonização empreendida pela CTNP, o presidente estadual Affonso Alves de Camargo, para manter o poder público por perto, eleva o povoado a município em 14 de março de 1929, garantindo “suporte” para a travessia do Tibagi – que ainda não contava com uma ponte – e a fundação de Três Boccas, cujo povoamento seria denominado Londrina em 3 de maio de 1932. De Cornélio Procópio a Villa Jatahy, o primeiro trem de carga corre em abril de 1932 e o tráfego regular de passageiros começa em 9 de maio. Por dois anos, como os trilhos terminavam ali, a viagem até Londrina, distante 22 quilômetros, sujeitava as pessoas a uma aventura: primeiro, a transposição do rio em balsa de madeira amarrada a cabos de aço. Se chove muito, a correnteza fica forte e perigosa; a seguir, o percurso é completado em estrada poeirenta que, de um dia para outro, pode virar um atoleiro.
Informações que constam do Espaço de Memória de Ibiporã – Nossa Gente, Nossa História – menciona que em 1932 é iniciada a construção da ponte sobre o Rio Tibagi, que durou dois anos. Enquanto isso, a Companhia instalou, de um lado ao outro do rio, um cabo de aço (teleférico) por onde era transportada a matéria prima para a continuação da construção da ferrovia do trecho Jataizinho – Londrina. A pioneira Laurinda Ferreira de Oliveira, filha de dona Amância, uma das primeiras a demarcar terras no município, conta que a demora de três anos para a construção desse trecho de apenas 30 quilômetros, se deu porque os índios não queriam que fosse construída a estrada de ferro. Por isso danificavam, durante a noite, o serviço que os construtores realizavam durante o dia.
O singelo transporte rodoviário, recém-inaugurado, utiliza a jardineira Catita, um pequeno ônibus cujas laterais ficam abertas. “O lamaçal constituía obstáculo que podia durar dias e até semanas”, anotou o jornalista Widson Schwartz, em seu artigo “Pérolas – Claras e Obscuras – da História de Londrina”, publicado em 2009. “Se chovesse, uma viagem de automotor demorava 10 horas, mas podia acarretar inclusive a interdição da estrada, para evitar que ficasse em situação ainda pior”.
Tendo sua origem numa colônia militar instalada em 1854, Villa Jatahy permanecera inerte e só encontra seus melhores anos após a chegada da ferrovia. Apesar da malária, converte-se em uma “cidade efervescente”, conforme escreveu Widson Schwartz na edição da Folha de Londrina de 16 de maio de 2012.
O médico João Dias Ayres relata no livro Portal da Esperança, Crônicas do Anteontem (2000) que o poder público estadual até cogitou deslocar a cidade por causa da malária (ou maleita), pois os remansos às margens dos afluentes do Tibagi abrigavam inúmeros focos de larvas de transmissores. Com isso, a população ficava sujeita a epidemias que se prolongavam de uma a outra estação chuvosa. Ante a impossibilidade de sanear o problema, o médico Júlio Moreira, enviado pelo interventor Manoel Ribas, “aconselhou simplesmente que o governo mudasse a cidade para lugar distante do rio Tibagi”. A população bateu o pé mas, a partir de 1935, o lugar acabaria sofrendo um esvaziamento provocado, principalmente, pelo pleno acesso a Londrina, quando começa a transposição do Tibagi pela ferrovia.
“Sem Lovat, nada existiria”
Lord Lovat cai fulminado por um ataque cardíaco em 16 de fevereiro de 1933, aos 62 anos, enquanto assistia a uma corrida de cavalos em Londres. Um ano antes, quando faltavam menos de 30 quilômetros para a chegada da linha a Londrina, ele anunciara aos acionistas da Paraná Plantations a construção dessa cidade:
– The land company’s first township[6].
A cidade fundada pela CTNP é o marco inicial do projeto de colonização que se prevê grandioso e Lovat demonstrava grande satisfação com isso. Nessa época, estavam projetadas 86 quadras ao redor de uma igreja com uma área retangular relativamente pequena, de 2,00 x 1,65km[7] .
A morte de Lovat é um baque para o projeto. Em 1967, ao receber o título de cidadania benemérita em Londrina, o primeiro presidente da CTNP, João Sampaio, que já não exercia o cargo, presta um tributo ao escocês. Ele afirma que Lovat, mesmo à distância, interveio intensamente de 1925 a 1932. “Sem Lovat, nada existiria”, assegura Sampaio, identificando nele “a figura eminente primacial do celebrado acontecimento”, referindo-se ao projeto de desbravamento e colonização regional, implementado segundo o “arrojado espírito de Lovat”. O desaparecimento de Simon Joseph Fraser coincide com o período em que a depressão econômica mundial chega ao seu ápice.
[6] “A primeira cidade da companhia de terras”
[7] Citação do livro “Cidades Plantadas”, de Renato Leão Rego.
Uma serraria em Nova Dantzig
Em viagem no dia 30 de abril de 1930, menos de um ano depois da chegada da expedição pioneira ao marco zero da atual Londrina, Amedeo Boggio Merlo avista pela primeira vez o patrimônio Três Boccas”, o embrião da cidade. O lugar, segundo ele, não tem mais que 18 casas, todas de madeira. Nesse dia, em que fica hospedado no pequeno Hotel Campestre, instalado pela própria companhia na saída para a atual Ibiporã, o italiano é o quinto hóspede a assinar o livro de registros. Antes de partir, anota em uma caderneta o nome do administrador do hotel: Alberto Fleuringer, auxiliado por sua esposa Frieda.
Observando o patrimônio, Amedeo enxerga longe e faz planos, embora não pretendesse ainda terminar seu ciclo na Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, cujas obras estão em marcha rumo a Londrina, cidade oficialmente inaugurada em 1934.
Sem nunca ter deixado de lado o sonho de “fazer a América”, ele e o amigo Pier Ferrucio Vecchi, também funcionário da ferrovia, combinam sociedade no ano de 1932 em um negócio promissor para a época: a instalação de uma serraria. Embora sem afinidade no ramo, ambos se propõem a investir, contando com os préstimos de uma pequena equipe. Amedeo entra com o aporte financeiro – fruto da indenização recebida pelo fim do contrato com a MacDonald Gibbs, dois anos antes – para a compra das máquinas e a construção das instalações, cabendo ao amigo a aquisição do terreno, feita diretamente, em condições facilitadas, junto à CTNP. Amedeo acumulara recursos, mas não o suficiente: por isso, recorre a um empréstimo junto ao Banco Brasileiro de Descontos S.A. Consta que ao tomar conhecimento da função exercida pelo cliente na ferrovia e a sua origem italiana, do Piemonte, o gerente da instituição autoriza sem delongas a operação.
A Serraria Nova Dantzig começa suas atividades timidamente naquele mesmo ano no minúsculo patrimônio de algumas poucas casas circundado por uma clareira no meio da floresta, que ostentava o nome de Nova Dantzig – uma referência à cidade alemã da qual originaram as primeiras famílias de moradores. É o surgimento da futura Cambé (elevada em 1937, ainda com a antiga denominação, a distrito de Londrina).
Para se ter ideia do pioneirismo dos sócios Amedeo Boggio Merlo e Pier Ferrucio Vecchi no ramo madeireiro, basta citar que em meados da década de 1930, segundo dados do Instituto Nacional do Pinho (INP), há apenas 11 serrarias nessa nova e ainda pouco explorada região. Seria uma das únicas a fornecer madeiras aparelhadas a partir de Bandeirantes, para atender ao surto de construções de casas e comércios em andamento.
A empresa começa com um pequeno locomóvel para a geração de vapor e, logo depois, uma segunda máquina. Ali também é erguida uma casa que o engenheiro planeja habitar em breve, tão logo termine sua participação na obra da ferrovia. Portanto, ele continua, ainda por mais um tempo, ao lado de Vecchi, prestando serviços à Companhia Ferroviária, enquanto funcionários cuidam do empreendimento em Nova Dantzig.
Naquele mesmo ano de 1932, uma jovem filha de italianos, nascida em São Paulo, estremecera o coração do italiano.
Como já dito, a cada três meses os profissionais do estafe técnico da ferrovia são liberados para um descanso de 15 dias, período em que invariavelmente seguem para a capital paulista. Nessas idas, eles aproveitam para passeios, rever familiares e amigos, frequentar restaurantes, fazer compras, enfim: retomar contato com a civilização. A ida de vez em quando a um centro urbano bem estruturado ajuda a reanimá-los para enfrentar a rusticidade e o isolamento da vida no sertão.
Ainda nos tempos da MacDonald Gibbs, quando a construção da linha atingia estágio final rumo a Villa Jatahy, Amedeo aproveitava a folga a que tinha direito e partia em direção a metrópole. Desta vez, a visita vai interferir no futuro do técnico. Frequentador habitual do Clube Itálico de São Paulo, onde se sente à vontade em meio a imigrantes e seus descendentes, ele participa de um piquenique em que faz amizade com a família Pistoni. Tereza, a única mulher entre quatro filhos de um casal italiano, bela, gentil e sempre iluminada por um sorriso, o encanta. O pai, Francesco, vive da importação de vinhos do Piemonte, que são engarrafados e vendidos na Rua do Seminário, centro da cidade, onde mantém comércio de secos e molhados. Amedeo tem 36 anos e Tereza, 28. A partir de então, a vida de ambos não seria mais a mesma.
Uma ponte sobre o Tibagi
Fazer os trilhos avançarem até Londrina é um desafio e serão necessários quase três anos para que isto aconteça, de 1933 a 1935. A própria CTNP assumira a empreitada de construir a linha, preservando a experiente equipe de profissionais que estivera a serviço da MacDonald Gibbs, agora sob a liderança de Amedeo Boggio Merlo.
Além de muitas formações rochosas, que são removidas com o uso de explosivos, há um rio pelo caminho, o segundo maior do estado. Para transpô-lo, só mesmo viabilizando uma ponte de grande extensão: nada menos que 294 metros.
Em um empreendimento como esse, se sabe, tempo custa dinheiro e a chegada da estrada de ferro a Londrina é fundamental para os objetivos da CTNP, pois sem ela fica mais difícil alavancar as vendas de terras. Da mesma forma, a produção agrícola e a madeira extraída da mata serão escoadas mais facilmente por trilhos.
O jornalista Widson Schwartz lembra que a demora do trem criava embaraços à futura cidade: os pioneiros estavam desanimados, pois não conseguiam vender o que produziam, já que compradores não iam até lá e nem havia uma forma segura de transportar a mercadoria que quisessem adquirir. Por isso, crescia a inadimplência dos colonos: sem terem como pagar seus lotes, eles refinanciavam a dívida ou permaneciam apenas com o pedaço já comprado.
Essa situação é confirmada em informações obtidas em cartas escritas por George Craig Smith (integrante da caravana pioneira de 1929) e disponibilizadas para pesquisa pela biblioteca do Museu Histórico de Londrina. Por um período as vendas de lotes da CTNP ficam muito aquém do esperado. Além das dificuldades para acessar Londrina, surgira um outro motivo: a deflagração em São Paulo, no dia 9 de julho de 1932, da mencionada Revolução Constitucionalista, que dura até o dia 4 de outubro do mesmo ano. Por causa desse movimento, que leva ao fechamento das divisas do estado, a vinda de famílias diminui consideravelmente. Os poucos que conseguem atravessar são obrigados a deixar suas bagagens em Ourinhos. Para complicar ainda mais, o fechamento das divisas impede que a maior parte dos mantimentos e demais produtos básicos à sobrevivência chegue à região de colonização. Como quase tudo é proveniente do estado vizinho, há o risco de faltar alimentos, sal, remédios, combustível e materiais de construção, entre muitos outros itens. Um período crítico e de incertezas.
De volta à normalidade, em 1933 são dadas instruções, enfim, para uma estimativa de custo visando a prolongar a linha da barranca ocidental do Tibagi até Londrina. Orçamento aprovado, a obra é confiada a empreiteiros locais e o trabalho tem início. Imaginava-se que a estrutura da ponte seria de aço, como outras, mas o Brasil já é um dos pioneiros na América Latina no emprego de concreto armado para grandes construções, o que demanda um investimento menor.
Para projetar a ponte, a companhia contrata o engenheiro Josef Grobenveger, profissional especializado que já havia prestado serviços em obras parecidas ao longo da Estrada de Ferro Sorocabana (no trecho entre as estações de Mairinque e Santos, no estado de São Paulo). A obra fica a cargo da empresa paranaense Rangel Christoffel & Cia. Em seu livro “Labirinto da Memória: paisagens de Londrina”, Humberto Yamaki utiliza informações da Revista Polytechnica que, em 1935, na edição de número 118, apresenta os dados técnicos da construção da estrutura:
“Extensão: 294m com 13 vãos principais de 20m e 2 vãos finais de 17m. Largura: 5,60m. Altura média do leito do rio ao trilho: 10m. Carga Móvel: trem tipo “Cooper E 45” ou “Allemão G”. Resistência: trens com 13 toneladas eixo. Resistência dos passeios: multidão à razão de 400KG/m². Concreto utilizado: 4.300 toneladas. Custo: Hum mil contos de réis”.
Tempos depois, a presença da linha férrea mudará completamente a situação em Londrina antes mesmo de o primeiro trem estacionar na estação. Widson Schwartz relata que muitos colonos se ajustaram para trabalhar nas obras da ferrovia para conseguir pagar as terras compradas junto a CTNP e financiar o início de suas produções agrícolas.
O ânimo é outro. Observa-se um crescimento gradual na venda de lotes urbanos e rurais da CTNP. Já em 26 de setembro de 1933, fica evidente a retomada de construções na cidade, em carta escrita por George Craig Smith: “Agora nós podemos nos orgulhar de ter 400 casas instaladas, matadouro, um mercado, um campo de futebol, serviço de coleta de lixo, fábricas de cervejas, sorvete, sabão, e estradas excelentes. Além disso, têm chegado aqui, desde então, centenas de colonos”.
Em 1934, quando vem outra vez à região para conferir a construção da ponte sobre o Tibagi, o presidente da Paraná Plantations, Arthur Asquith, dá dimensão ainda maior à cidade: “600 casas”, mostrando-se admirado com a “população de 10.000 colonos” nas terras do empreendimento britânico.
Registro fotográfico de José Juliani, datado de 4 de abril de 1935, permite ver a estação ferroviária de Londrina e os trilhos completamente acabados. A inauguração acontece em 28 de julho daquele ano, com a presença do interventor estadual Manoel Ribas, que entrega também a ponte sobre o Tibagi.
Com o trem chegando a Londrina, a CTNP trata de incrementar a propaganda do seu projeto de colonização, visando a atrair gente de todo o Brasil e do exterior. Os trilhos são a segurança para os donos de terras de que vão vender suas produções agrícolas; a facilidade do acesso aos bens de consumo do básico ao supérfluo; a comodidade do ir e vir; e, acima de tudo, a representação grandiosa da modernidade que havia chegado aos sertões do norte do Paraná.
Na edição que retrata a inauguração da estação ferroviária, o jornal londrinense Paraná Norte destaca uma notícia, ao pé da página, já sobre a expansão da linha: “Estando já preparado o leito da estrada de ferro no trecho Londrina-Nova Dantzig (Cambé), e colocados os dormentes foi começado no dia primeiro, do corrente, o serviço do avançamento…”
Além de Londrina, o trecho até Ourinhos já contava com 10 estações até 1935: Presidente Munhoz e Leoflora (inauguradas em 1924), Cambará (1925), Meirelles, Andirá, Bandeirantes, Cornélio Procópio, Congonhas, Frei Timóteo e Jatahy (1932). Porém, ganharia outras 12 estações até 1949, aumentando em muito a possibilidade de paradas do trem, para desânimo dos passageiros. Uraí e Ibiporã receberam as suas em 1936; a de Marques dos Reis ficou pronta em 1937 e, dois anos depois, foram entregues as de Timburi, Cinzas e Serra Morena; em 1940, foi a vez de Ibiúna e Laranjinhas e, em 1941, de Catupiri; as últimas foram as de Nionice da Silva e Santa Mariana, em 1948, e a de Guapuruvu, em 1949.
A explosão populacional
A mais notável obra de colonização que o Brasil já viu” é o slogan criado e multiplicado por emissoras de rádios de vários estados e também pelos principais jornais do país e até alguns do exterior.
Os planos iniciais definem que haverá uma única estrada de ferro e núcleos de colonização a cada 15 quilômetros. Por sua vez, os lotes rurais devem ter, no máximo, 15 alqueires paulistas ou 36 hectares. É um padrão nem sempre seguido, pois em alguns lugares a empresa vai comercializar áreas maiores, caso de Maringá.
Como há muitos rios e ramificações de afluentes, os vales são divididos todos com acesso a água numa ponta e estrada na outra, originando lotes finos e compridos.
A companhia recorta toda a sua região em pequenas frações de terra, de modo a oferecer oportunidade para que milhares de pessoas, provenientes de todas as partes do país e do mundo, adquiram imóveis e venham fazer a vida com agricultura ou o comércio nas cidades.
O movimento de pessoas interessadas, uma verdadeira corrida, vai fazer lembrar uma nova Califórnia, conforme comentou o pioneiro e ex-empresário Osvaldo Chiuchetta, de Maringá, que foi um estudioso do assunto.
O comprador tem dois anos de carência para começar a pagar e quatro para saldar a dívida, com juros de 8% ao ano. Quem compra terreno na cidade e constrói logo a sua casa ou estabelecimento comercial, ganha 50% de desconto sobre a dívida.
Esse modelo de colonização é uma novidade, pois coloca em curso quase uma reforma agrária, sem intervenção do estado, com propaganda em larga escala, transporte gratuito para os interessados, posse da terra em quatro anos, alguma assistência técnica e financeira, levantamento de toda a área e até o mapeamento do solo em determinadas zonas. Em sua História do Paraná, Ruy Wachowicz registrou: “Os ingleses nunca poderiam ter adivinhado, nem sequer sonhado, o esplêndido futuro da região que se propunham a colonizar”.
Considerando também a fase em que a CTNP passou a ser controlada por brasileiros (a partir de 1944, ano em que a ferrovia é estatizada e incorporada ao patrimônio federal), nessa área de terras entrecortada por 430 quilômetros de linha que rasgou o sertão, floresceram nada menos que 62 núcleos urbanos em meio a extensa mata que, rapidamente, cedeu lugar a dezenas de milhares de propriedades rurais, a maioria de pequeno porte, voltadas inicialmente para o cultivo de café. Primeira cidade a surgir, Londrina (fundada em 1934), está a 258 quilômetros da localidade mais distante, Umuarama (nascida em 1955), e a 110 de Paiçandu (1960), a mais jovem.
De 1929 a 1935 a empresa abre 3.615 quilômetros de estradas e, até 1943, havia vendido 41 mil dos 1,316 milhão de hectares de terras que possuía. Para se ter ideia da intensidade com que se desenvolveu a colonização, apenas dez anos depois, em 1953, nada menos que 968 mil hectares estão negociados. [9]
Em uma fração de 90 anos, de 1924 a 2014, a população das terras adquiridas pela Paraná Plantations salta de zero para quase 2 milhões de pessoas.
Pelo censo de 1940, Londrina conta 75.296 habitantes, compreendendo 24.517 na sede, 22.593 na Colônia Roland (Rolândia), 9.674 em Nova Dantzig (Cambé), 5.761 em São Sebastião (Faxinal) e 4.314 em Marilândia (hoje Marilândia do Sul). Há 14.788 construções de madeira e 356 de alvenaria. O levantamento consta do trabalho Norte do Paraná – 80 anos (1924-2009), produzido por Yuri S. Andrade e disponibilizado em seu blog. Desse total, ao menos 10% são estrangeiros, um número muito alto, considerando pelo menos metade da população composta de crianças e jovens. “Entre as pessoas acima de 20 anos, o número de estrangeiros possivelmente se equivalia ao de brasileiros”, diz Andrade. O censo indica também que 87% dos moradores professam a religião católica.
Por causa da intensa presença de estrangeiros, o norte do Paraná é, por muito tempo, conhecido como “colônia internacional”. As nacionalidades somam mais de 40 já na década de 1930, segundo historiadores, o que reflete a vigorosa ofensiva publicitária feita pela Paraná Plantations em praticamente todo o mundo. Haviam sido veiculados anúncios em jornais, revistas e rádios, além de folhetos, em língua portuguesa, inglesa, alemã, francesa, espanhola, italiana, polonesa e japonesa. A propaganda sistemática atingia grande parte do Brasil e as capitais dos principais países europeus e asiáticos.
A maior parte dos brasileiros compradores de terras é formada por paranaenses e paulistas, descendentes de italianos, japoneses, sírios, libaneses, portugueses, espanhóis, alemães, judeus, eslavos e outros. A proximidade faz também com que muitas famílias procedentes de Minas Gerais se instalem na região.
Apesar do projeto ter sido conduzido por britânicos, seus compatriotas não se interessaram: o número dos que adquiriram terras por aqui é insignificante. Por outro lado, a companhia cogita a possibilidade de facilitar a vinda de iraquianos, a maioria dos quais se prestaria ao trabalho braçal. Entretanto, autoridades do estado e a população já residente na região, mobilizam-se para impedir que isto aconteça, alegando tratar-se de um povo de trato difícil e muito belicoso.
[9] A Propriedade Rural”, organizado em 1976 pelo prof. Eurípides Simões de Paula, com os anais do VIII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, e números extraídos de pesquisa realizada pelas professoras France Luz e Ivani Aparecida Rogatti Omura, da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Traçado da linha antecipa as cidades
Renato Leão Rego inseriu no livro As Cidades Plantadas: “Ainda que na real sequência dos fatos a ferrovia sempre alcançou cidades já plantadas, edificadas, habitadas e ativas, o seu traçado antecipou e condicionou essas locações.
“Desse modo, os assentamentos urbanos foram alinhados ao longo da estrada de ferro, em intervalos pequenos e mais ou menos regulares. Portanto, a linha férrea norteou todo o empreendimento da Paraná Plantations: ela foi o elemento estruturador da paisagem em construção. Foi o espetáculo privilegiado da civilização capitalista na mata”.
Os projetos urbanos elaborados em datas muito próximas situam as cidades da Paraná Plantations no alinhamento da ferrovia com uma tal distância entre si, que Londrina e Cambé estão separadas por apenas 13 quilômetros, Cambé e Rolândia somente 10, de Rolândia até Arapongas são só 12 e de Arapongas a Aricanduva mais 9, dali a Apucarana 8, de Apucarana a Pirapó mais 7 quilômetros, e entre essa parada e Jandaia 12, e com mais 12 se chega a Mandaguari – e assim por diante. Portanto, as cidades não são plantadas aleatoriamente: obedecem antes a uma deliberada configuração.
No final de 1935, os trilhos já estão em Nova Dantzig e, no início do ano seguinte, avançam até Rolândia. Daí para a frente, as obras seguem em ritmo mais contido e só em 1941 a linha cruza Arapongas, alcançando Aricanduva e Arapongas em 1942, ano em que a localidade conhecida como Ceboleiro, em Rolândia, também recebe uma estação. Só em 1954 é que Pirapó, Cambira, Jandaia do Sul, Mandaguari, Marialva e Maringá, passam a contar com transporte ferroviário de passageiros e cargas.
O engenheiro Wallace Morton é o segundo superintendente da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná. Ele chega a Ourinhos em 1929, onde assume a superintendência da estrada de ferro em 1932, posto no qual permanece até a venda da estrada de ferro para o governo brasileiro, em 1944 (como veremos nas páginas seguintes).
Em depoimento por escrito ao jornalista Jefferson Del Rios, em 1986, pouco tempo antes de morrer em Camberley, Inglaterra, Morton falou sobre antigos companheiros de trabalho: “Com orgulho, posso dizer que nos anos de 1932 até 1944, se a operação da estrada foi um grande sucesso, isto se deve à leal cooperação e dedicação ao trabalho que recebi de todos os empregados da estrada”.
Brasileiros assumem a companhia
A década de 1940 promove uma mudança brusca nos planos da Paraná Plantations. Tudo começa com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, quando a Inglaterra passa a necessitar de recursos em escala cada vez maior para enfrentar suas imensas despesas.
Em razão disso, o governo britânico adota uma política de retorno compulsório dos capitais ingleses aplicados no exterior. Semanalmente, a imprensa de Londres publica uma lista de empresas oferecidas à venda em todo o mundo.
Conforme o livro Colonização e Desenvolvimento do Norte do Paraná, que resgata a história da CTNP e de sua sucessora, a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), o engenheiro Gastão de Mesquita Filho – aquele mesmo que participara da construção da linha entre Ourinhos e Cambará – entra novamente em cena. No ano de 1942, ao visitar o Escritório Levy em São Paulo, Mesquita toma conhecimento da lista de empresas à venda, entre as quais figura a Companhia de Terras Norte do Paraná, avaliada em 1,520 milhão de libras esterlinas. Percebendo estar diante de uma grande oportunidade, o engenheiro se dirige imediatamente ao Rio de Janeiro, para uma conversa com o amigo Gastão Vidigal que, na ocasião, dirigia o departamento de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cechim). O negócio deveria ser total: as terras e mais a estrada de ferro, a qual, por ser uma concessão pública, precisa contar com um parecer do governo federal antes da transação. Há urgência em fazer o negócio, pois o governo britânico fixou como limite de prazo para a repatriação de capitais, o dia 31 de dezembro de 1943.
O presidente Getúlio Vargas concorda com a transação, mas exige que a estrada de ferro (nessa época ligando Ourinhos a Apucarana), seja adquirida pela União. Mesquita cita no livro que Vargas “tirou o couro” dos investidores, propondo pagar apenas 88 mil contos de réis pela ferrovia, quando o preço fixado pelos ingleses – contabilizado e reconhecido pelos órgãos oficiais – era de 128 mil. Os investidores brasileiros ficam obrigados a adquirir dos ingleses por 128 mil contos de réis e repassar ao governo federal por 88 mil, absorvendo o ônus correspondente à diferença. Mesmo assim, Gastão Vidigal e Gastão de Mesquita Filho passam a organizar o grupo sucessor da CTNP.
A totalidade das ações é absorvida por quatro grupos: Gastão Vidigal, Gastão de Mesquita Filho, Arthur Bernardes Filho e Irmãos Soares Sampaio. Estes dois últimos eram candidatos à realização de todo o negócio com os ingleses, mas gestões de Gastão Vidigal levam à composição da sociedade. Posteriormente, aqueles dois grupos vendem a sua parte às companhias Sulamérica e Matarazzo, os quais, por sua vez, cedem aos grupos Vidigal e Mesquita a parcela acionária que haviam adquirido. Nasce a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), que recebe esse nome em 1951.
De 1925 a 1944, o capital da Companhia de Terras evoluíra de 1.000 contos de réis para 50 milhões de cruzeiros. Mas pode-se dizer que os ingleses estavam ainda apenas começando a deslanchar em seu empreendimento, uma vez que até 1943 eles tinham vendido somente 23,43% das terras e 26,61% das propriedades, menos de um terço. Coube ao grupo nacional negociar 76,57% das terras e 71,39% das propriedades até 1980.
De acordo com o jornalista londrinense Widson Schwartz, o norte-americano Percival Farquhar (1864-1953), considerado um dos mais obstinados empreendedores do ramo ferroviário na história econômica das Américas, fez um paralelo entre os golpes que havia sofrido no Brasil, na época das duas Guerras Mundiais, e a perda da Companhia de Terras pelos ingleses no Paraná. No livro Farquhar, O Último Titã (Editora da Cultura, 2005), o biógrafo Anderson Gauld menciona que seguindo a tradicional política britânica em tempo de guerra, o primeiro-ministro Winston Churchil exigira a venda da empresa e a aplicação do dinheiro em bônus de guerra. Farquhar calculava que a soma recebida “tinha dado para financiar apenas um dia do monstruoso esforço de guerra feito pela Inglaterra”. Ele lamentava também que o grupo liderado pela Paraná Plantations, às vésperas do período de maior lucro do empreendimento, fosse obrigado a vendê-lo “a brasileiros sonegadores de impostos, por uma fração do que ia valer depois”.
A ferrovia apresentava alta rentabilidade. Desde a inauguração do tráfego em Londrina a Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná fechava o balanço anual com superávit, assinalando em 1941 “o recorde mundial de renda quilométrica” – 10,4 mil contos de réis em 251 quilômetros.
Um levantamento financeiro realizado junto a Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, compreendendo o período de 1925 a 1943, revela que daquele primeiro ano até 1932, a empresa acumula prejuízos – exceção feita apenas ao ano de 1927, quando lucra 49 mil contos de réis. Mas de 1933 a 1943, a rentabilidade é elevada. Os quatro últimos anos de operação (1940-1943) são os mais lucrativos, com os ganhos variando entre 7,174 a 8,355 milhões ou contos de réis.
Uma parte significativa dos lucros com a ferrovia se deve, como se poderia imaginar, ao transporte de produtos agrícolas. Até 1932, aparecem na pauta o milho em primeiro lugar, a madeira, o café e o feijão, respectivamente. Em 1930, inicia-se a produção de café no “norte novo” e aquele produto assume a liderança, no final da década. A madeira, como segundo produto de exportação, tem esgotamento rápido na década de 1930. Segundo Nadir Aparecida Cancian, autora de A conjuntura econômica da madeira no Norte do Paraná (Curitiba, 1974), isto aconteceu porque os agricultores queriam livrar-se das matas, sem perda de tempo, para plantar suas lavouras.
Em 1940 estão construídos 237 quilômetros e o capital empregado pela Companhia até 31 de dezembro daquele ano, reconhecido pelo estado do Paraná, é de quase setenta contos de reis. Somente em 1944 é que as negociações para a venda da empresa, iniciadas em 1942, são concluídas. Nessa época, os trilhos alcançam Apucarana, com 269 quilômetros de extensão. A incorporação da estrada de ferro à Rede Viação Paraná-Santa Catarina é feita por meio do decreto-lei nº 6.412, de 10 de abril daquele ano.
Após a Segunda Guerra Mundial, está esfacelada a era de ouro britânica. Mesmo com a heroica vitória, o Império se dissolve rapidamente, ao mesmo tempo em que sua influência e prestígio são corroídos ao redor do mundo.
Nas mãos do governo, a ferrovia se deteriora
Com a aquisição da estrada de ferro pelo governo brasileiro, a denominação deixa de ser Companhia Ferroviária São Paulo – Paraná, uma vez que a estrutura é absorvida pela Rede Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC).
E, prestado pelo poder público, o serviço perde qualidade. Os trens andam sempre lotados e não há mais pontualidade, o que dá origem a muitas reclamações. O povo caçoava e, segundo Antônio Manicardi, que foi o primeiro funcionário público de Maringá e costumava viajar de trem nas décadas de 1940 e 1950, quando se muda de Itápolis (SP) para o Paraná, as iniciais RVPSC acabam ganhando sentido pejorativo. Como ainda se mantinha a venda de salgados, doces e bebidas nos carros, logo começam a espalhar, em tom jocoso, que as letras sugeriam “Restaurante Vagabundo Pastel Sem Carne”.
Em 1950, a malha ferroviária existente no país é composta por 49 estradas de ferro, totalizando 36.745 quilômetros de linhas. A RVPSC é incorporada à RFFSA em 1957, que promove, pouco tempo depois, a mudança do consumo de lenha para diesel, substituindo as velhas Maria-Fumaça por novas locomotivas diesel-elétricas, o que elimina o incômodo das fagulhas e da fumaça, além de terem mais autonomia e não precisarem de reabastecimento frequente.
O professor Jonas Liasch, que mantém um blog sobre a ferrovia, conta que aos poucos, os vagões de madeira são trocados por carros de aço, mais seguros, e as novas locomotivas passam a tracionar trens mais longos e com maior velocidade, podendo manter uma média de 60 quilômetros horários entre as estações.
Na década de 1960, um dos maiores problemas para a plena utilização do porto de Paranaguá está na falta de uma ferrovia ligando o norte do estado a Ponta Grossa. Até então, para transportar a produção, é preciso percorrer 620 quilômetros, passando por Jaguariaíva, vencendo um traçado cheio de dificuldades, como declives e aclives muito acentuados e curvas extremamente fechadas. A construção da ferrovia Apucarana–Ponta Grossa soluciona o problema, reduzindo o trecho em quase 300 quilômetros e o tornando bem mais seguro. A ferrovia é inaugurada em 1975 e imediatamente entregue ao governo federal. Logo no primeiro ano de funcionamento da Estrada de Ferro Central do Paraná, o porto de Paranaguá registra um acréscimo de 44% no volume de carga embarcada.
Nos anos 1970, a Ferrovias Paulistas S/A (Fepasa), sucessora da Estrada de Ferro Sorocabana, permite que seus carros Budd, de aço inoxidável, circulem no norte do Paraná, de Ourinhos a Maringá, o que evita a incômoda baldeação naquela primeira cidade. Os trens que circulam no Paraná são tracionados, então, por duas locomotivas e, chegando a Ourinhos, incorporados à outra composição, oriunda de Presidente Prudente, daí seguindo para a Estação Júlio Prestes, em São Paulo, com tração elétrica. “As passagens, a partir de Ourinhos, tornavam-se mais caras, diminuindo a vantagem que o trem tinha sobre os ônibus, que, ainda por cima, eram bem mais rápidos”, menciona Liasch.
Por volta de 1978, um trem de passageiros típico que circula na região tem duas locomotivas de 1600 HP cada uma, um carro-bagageiro, quatro carros de segunda classe, um carro-restaurante e dois carros de primeira classe, na cauda. Em alguns casos, os carros-bagageiros e restaurantes são supridos pela RFFSA, de Ourinhos a Maringá, enquanto os carros equivalentes da Fepasa seguem para Presidente Prudente ou ficam em Ourinhos, onde são usados em outros trens.
Nem o baixo preço das passagens, que foi caindo nos anos seguintes, permite que os trens consigam concorrer com os ônibus, cada vez melhores, mais rápidos e com opções de horário. A RFFSA acaba suprimindo os trens de passageiros, que se tornam antieconômicos. A última viagem no Paraná ocorre em 10 de março de 1981.
O asfaltamento das estradas diminui a importância das linhas e essa fase coincide com o sucateamento generalizado do transporte ferroviário no Brasil, a partir da década de 1950. Os trens de passageiros desaparecem quase que completamente da malha ferroviária do país.