Parte Final

A fazenda, uma relíquia

Ao final da movimentada Avenida Guaiapó, região norte de Maringá, a estrada de terra nasce justamente na comunidade onde se avista a Capela Nossa Senhora Aparecida, erguida no começo da década de 1950 com parte da madeira fornecida por Amedeo. A cada veículo, uma nuvem vermelha se levanta do chão e se vai dissipando preguiçosamente.

Mais à frente, a estrada ganha a companhia de lavouras em ambos os lados e segue em direção ao norte, acompanhando as ondulações do relevo. Quando, enfim, alcança a crista do espigão, permite ao viajante contemplar, inteira, a cidade a se esparramar no horizonte. Com seus 400 mil habitantes, Maringá é a terceira maior metrópole do estado, à sombra de sua irmã mais velha, Londrina. Quem perscruta pela janela do tempo, descobre: nada ali se parece com o lugar desafiador aberto no machado pela força dos braços dos primeiros a chegar. Se antes, para dar espaço aos cafezais, a floresta ia sendo empurrada para longe, atualmente não se vislumbra ali um único pé de café. A soja, semeada na primavera, toma conta de tudo e se espraia a sumir de vista. No inverno, é a vez do milho e do trigo. Há pelo caminho raros resquícios de outrora: tirando a Capela Nossa Senhora Aparecida, da qual já se falou, restam apenas algumas construções e a poeira teimosa a tingir o ar.

Adiante, estruturas industriais destoam do bucólico cenário marcado pela mansidão e a simplicidade da natureza. É logo ali, e quem chega, deixa para trás o leito de chão batido e adentra em um caminho estreito e bem conservado, que acompanha as ondulações do terreno e vai descendo em direção a uma floresta, entrecortada por um pequeno corredor. A exuberante vegetação surpreende ao reproduzir o cenário hostil que aguardava pelos pioneiros. Há enormes perobas e uma infinidade de espécies outras que, emaranhadas, formam uma sólida massa verde, coando em suas copas os raios do sol e servindo de lar a um amplo leque de espécies animais – desde minúsculos insetos e borboletas, pássaros e répteis, a raposas e capivaras.

Aquele corredor que se constrange em meio a mata não é apenas um caminho a conduzir para a sede da fazenda, dezenas de metros abaixo. É a representação de um túnel do tempo que remete a uma época distante e já em grande parte esquecida da memória regional. Amedeo se esmerou, em 1952, ao projetar e construir a espaçosa casa de madeira: há vários quartos e sala dividida em dois ambientes que acessam a varanda, da qual se contempla a piscina, o jardim e de onde se pode ver, mais ao fundo, a residência do caseiro e as instalações que remontam ao período do café. Da sede não se enxerga o amplo terreiro de tijolos usado para secar ao sol os grãos trazidos da lavoura, mas ele ali está, justaposto a tulhas onde o produto, juntado em sacos, ficava armazenado até o momento da comercialização. Restam ainda, até mesmo, algumas casas da antiga colônia, vazias, que emolduram a paisagem de onde se veem propriedades vizinhas.

A Kaetê é histórica, ela própria uma relíquia a desafiar o tempo, que marcha em outro ritmo. Tirando a parte de cima, onde uma extensa faixa de terras foi arrendada a agricultores das imediações para o plantio de grãos, o segmento de baixo, que a floresta separa, é preservado cuidadosamente pelos familiares do saudoso italiano.

À frente da fazenda, hoje, está Roberto. Casado com a professora Maria Rosária e pai de dois filhos (um dos quais falecido), ele reside com sua família em São Paulo, mas, periodicamente, se desloca para Maringá, onde se hospeda na sede repleta de lembranças. Nessas oportunidades, se inteira dos negócios, providencia insumos, manutenções, efetua pagamentos, enfim.

Fazenda Kaetê – Créditos: Arquivo familiar
Crianças, Fazenda Kaetê – Crédito: Arquivo familiar
Fachada Sede Fazenda Kaetê – Crédito: Arquivo familiar

O cuidado com a história

Saudosista, Roberto tem especial apego por objetos que pertenceram ao pai e estão expostos pela casa: relógios de parede, quadros com fotografias de Tereza e dos filhos ainda pequenos, um megafone, lampiões, entre tantos outros. Zeloso, foi ele quem organizou o amplo acervo fotográfico e de imagens produzidos por Amedeo, tendo se preocupado em recuperar filmes e digitalizado o que fosse possível, editando passagens que são apresentadas a visitantes. Roberto se emociona ao assistir o que já viu tantas vezes. Pelo olhar do pai, que durante a construção da ferrovia estava sempre acompanhado de uma câmera, ele revê, em imagens de razoável qualidade, a lavra dos destemidos trabalhadores no sertão, a locomotiva em suas festivas investidas nos povoados, a gente humilde que, desprovida de quase tudo, comovia o repórter com seu sorriso ingênuo e provocaria igual efeito nas pessoas que veriam os filmes mesmo décadas depois.

Amedeo não apenas cuidou de filmar e fotografar, perpetuando cenas e personagens, como ele próprio se colocou diante das lentes. Por vezes, o engenheiro compenetrado, de óculos circulares e uma bituca de cigarro no canto da boca, é surpreendido às gargalhadas em relaxantes tertúlias com amigos.

Até mesmo o espaçoso e bem aparado jardim da sede exibe uma peça de museu: repousa ali um locomóvel utilizado em umas das serrarias do italiano. Na feição de uma pequena maria fumaça, a vetusta máquina, envolvida em uma lona que a protege da corrosão, teria ainda disposição para o trabalho, queimando lenha e gerando vapor, mas sem encontrar utilidade em nossos dias, nem mesmo ali na Kaetê.

Roberto conta que quando o pai morreu, ele e o irmão Hugo Francisco deixaram seus empregos para assumir os negócios da família. Técnico eletrônico e administrador de empresas, ele prestava serviços à Texas Instrumentos, fabricante de produtos para eletrodomésticos, em São Paulo. O agrônomo Hugo integrava a equipe da Casa da Lavoura em Presidente Epitácio, no oeste paulista.

Ambos se envolveram de corpo e alma na gestão da serraria em Umuarama e da fazenda de café em Maringá. Segundo Roberto, a primeira já apresentava declínio, com sua rentabilidade comprometida pelos altos custos e a falta de melhor gerenciamento. Mesmo contando com uma equipe dedicada, que merecia a confiança do proprietário, as constantes ausências dele acabaram comprometendo o negócio.

Desperdiçava-se muita madeira por falta de cuidado nos cortes e grandes volumes de sobras eram doados para comerciantes, como forma de desocupar o pátio. O pai havia investido na compra de caminhões usados, remanescentes da Segunda Guerra Mundial, para o transporte de toras. Porém, tais veículos, embora resistentes, não estavam adaptados para esse tipo de transporte. Em poucos anos, a empresa esgotou completamente seu ciclo e o fechamento se daria no começo da década seguinte, em 1971. Roberto e Hugo conduziram no local um projeto imobiliário, com o loteamento da área onde ficava a antiga serraria.

Por outro lado, como a Fazenda Kaetê vinha apresentando resultados insuficientes, Roberto decidiu retornar ao mercado de trabalho, sendo admitido na General Telephone (GTE) e, a partir de 1973, na concessionária de energia Light, em São Paulo, onde, respondendo pela chefia de suprimentos, ficaria até 1997, quando aposentou-se.

Uma segunda tragédia familiar

Hugo Francisco permaneceu na fazenda e certamente continuaria lá, não fosse por uma outra tragédia familiar.

No dia 24 de março de 1979, ele aproveita que está em São Paulo e, entendendo-se com seu primo em segundo grau, Paulo Heitor Robba, engenheiro e piloto de um pequeno avião, decidem voar até Mogi-Mirim, a 150 quilômetros, no centro-leste do Estado, para ver cavalos de tração em uma fazenda chamada Água da Prata.

O mundo vive, nessa época, uma crise de abastecimento de petróleo, o que fez com que, no Brasil, o governo instituísse o Proálcool com a finalidade de desenvolver um combustível a partir da cana-de-açúcar como alternativa à gasolina importada. Ressurge também, ao mesmo tempo, o interesse de muitos produtores rurais pela tração animal, uma forma de reduzir os custos da agricultura com a operação de máquinas.

Paulo Robba é filho do italiano Enrico, também piloto de avião e primo da mãe de Hugo, mencionado no início da segunda parte deste livro.

O bimotor Piper Asteca matriculado PT-IKT, de propriedade da Construtora Engemaia, aterrissa num campo de aviação em Mogi-Mirim e lá permanece até o início da noite, quando os dois primos retornam em companhia de um promotor da cidade, Carlos Siqueira Netto, que havia lhes pedido carona.

Como escurecera, o funcionário do campo alerta o piloto sobre o risco de decolar em condições assim, de pouca visibilidade, lembrando também que as condições meteorológicas recomendam cautela em São Paulo, onde chove torrencialmente. Paulo, contudo, assegura não haver dificuldades, pois seria um voo curto, de 40 a 50 minutos. Os três ocupantes do aparelho não poderiam supor que, iniciada a viagem, era esse o tempo que lhes restaria de vida.

A aeronave alça voo, segue normalmente em direção ao destino e, pouco tempo depois, já sobrevoando a capital, não é autorizada a descer em Campo de Marte. Paulo recebe a orientação de aterrissar no Aeroporto de Congonhas, que oferecia maior segurança naquele momento. Ele manobra o avião e, por volta das 20 horas, em meio às densas nuvens, praticamente às cegas, tenta seguir naquele rumo. Só não percebe que, com os faróis e as luzes apagadas do aparelho, está indo de encontro a um edifício residencial, o Marajó, de 17 andares, situado na rua Gabriel Passos, em Moema. Nesse instante, no 16o piso, a funcionária do apartamento 161, ao sair para apanhar algo na área de serviço, tem sua atenção despertada para um forte ruído de motor, seguido de uma explosão, que lhe tira os sentidos. A aeronave se espatifa dois pavimentos abaixo, ao colidir com as paredes do apartamento 141, cujos moradores haviam saído. Os destroços do avião alojam-se quase que inteiramente no interior do imóvel, permanecendo apenas a cauda à vista, de onde emanam línguas de fogo.

Hugo, de 39 anos, era casado com a jornalista Isabel Dirce de Aguiar, repórter da Folha de S. Paulo, com quem tinha duas filhas. Sua morte prematura exige que o irmão Roberto, recém-admitido na Light, se desdobre ainda mais para cuidar, da maneira como fosse possível, da administração da propriedade em Maringá, para onde passa a deslocar-se com frequência.

Um dos últimos redutos

A fazenda manteve seus cafezais até 1975. O imóvel enfrentava dificuldades em razão dos baixos resultados oferecidos pela cultura, que ia de mal a pior. Foi um momento em que a economia do norte do Paraná, antes tão dinâmica e progressista, se viu em xeque com o enfraquecimento da agricultura, ainda muito apoiada no café. O estado sofreu um baque naquele ano, quando a geada negra varreu praticamente todo o seu parque cafeeiro. Como consequência imediata, entrava em colapso o modelo agrícola baseado no colonato. Perdendo sua ocupação nas fazendas, a maior parte dos trabalhadores dos cafezais esvaziou as colônias e migrou para os centros urbanos em busca de novas oportunidades. Principiava um movimento contrário ao que se vira nos tempos promissores e efervescentes que marcaram a comercialização de terras por parte das companhias colonizadoras. O chamado êxodo rural enchia agora as estradas de caminhões carregados de mudanças, mas seguindo o caminho inverso.

A Kaetê passou a ser olhada com cobiça por investidores não interessados, propriamente, em seu potencial agrícola. Eles vislumbram o bem localizado imóvel, tão próximo do perímetro urbano, com o apetite de explorá-lo por meio de projetos imobiliários, o que já teria acontecido não fosse a firme resistência de Roberto, para quem, além do valor sentimental, a fazenda é um dos últimos redutos ainda preservados da história inicial de Maringá.

Tereza e Amadeo

Em São Paulo, Tereza foi, aos poucos, percebendo no alegre convívio junto aos netos, uma nova motivação, transferindo para o papel de avó a mesma ternura e dedicação que fizeram dela uma mãe devotada e amorosa. Guardava sempre um sorriso meigo e cativante – uma de suas marcas. Terminou os seus dias em 1998 após passar por problemas cardíacos, aos 80 anos.

Nos exatos 45 anos de sua trajetória no Brasil, Amedeo Boggio Merlo vivenciou muitas histórias e experiências que fizeram dele um personagem diferenciado.

– A serviço dos britânicos participou com protagonismo, na condição de especialista em construção de ferrovias e pontes, da edificação dos principais trechos da antiga Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, entre Cambará a Londrina.

– Foi correspondente, durante alguns anos, do jornal italiano Fanfulla.

– Quando chegou em Londrina, havia 18 casas apenas. Foi o quinto hóspede registrado na hospedaria construída na saída para a atual Ibiporã, em 30 de abril de 1930, que estava sob os cuidados de Alberto e Frieda Fleuringer.  

– Numa segunda etapa, como empreendedor e mesmo sem dominar o conhecimento na área, instalou em sociedade com o amigo Pier Ferruccio Vecchi a primeira serraria em Nova Dantzig (atual Cambé), então um pequeno distrito de Londrina, chegando a ter ali, também, uma olaria.

– Sendo um dos primeiros moradores de Nova Dantzig, iniciou ali a vida de casado e projetou a primeira construção da Capela de Santo Antônio, de madeira, fornecendo grande parte do material.

– Adquiriu em 1937 com cinco sócios, entre eles Luiz Estrella, um avião monomotor batizado com o nome de Cidade de Londrina.

– Pioneiro, igualmente, em Arapongas, para onde transferiu a serraria – sempre em sociedade com Vecchi – que recebeu o nome Aratimbó e foi morador, durante vários anos.

– Proprietário rural e produtor de café em Maringá, tendo adquirido a Fazenda Kaetê em 1945, antes da fundação do município.

– O povoamento de Umuarama foi o terceiro e último endereço da serraria que tinha o amigo Vecchi como sócio, mantendo o nome Aratimbó e se tornando um dos primeiros empresários locais em época que precedeu a fundação do município.

– Sempre magnânimo em suas atitudes, doou terras para a instalação de escolas e bibliotecas e madeiras destinadas a construção de igrejas e instituições assistenciais.

– Destacou-se no “norte britânico” do Paraná, no registro de imagens fotográficas e em vídeo. Seu rico acervo ajuda a entender e a resgatar a saga dos desbravadores, além de preservar a memória regional.

– Em 2003, trechos de um vídeo que produziu em 1932, mostrando a cidade de São Paulo, foram aproveitadas na novela Esperança, pela Rede Globo.

Homenagens

Em 1964, quando das comemorações dos 30 anos de Londrina, Amedeo fez questão de comparecer e foi um dos pioneiros homenageados. Ele recebeu um quadro e um relógio de bolso, de prata.

Em 1990, por meio do decreto legislativo, a Câmara Municipal de Maringá homenageia o italiano, denominando Amedeo Boggio Merlo uma rua do Conjunto Residencial Ney Braga, em Maringá.

A 2 de outubro de 1996, o decreto legislativo no 041/96, da Câmara Municipal de Umuarama, denomina de Rua Amedeo Boggio Merlo a rua “8”, localizada no Jardim Danielle.

O italiano é distinguido em publicações de época, como jornais e revistas, além de documentos diversos levantados por historiadores e jornalistas, por sua fecunda participação na história regional.

Seu nome é destacado também no Dizionario biográfico e no livro Sapere la Strada, publicações financiadas pela Banca Sella, sobre a trajetória dos emigrantes de Biela e suas conquistas pelo mundo.

Amedeo não apenas fez história: teve o cuidado de registrá-la, dignamente, o que o imortaliza. Em todo o seu conjunto, essa cápsula do tempo, agora aberta, é oferecida como uma dádiva às gerações do presente e do futuro.